29-07-84
«Apenas e só, sem mente, quatro horas da madrugada. Depois dum grande
dia de calor, anteontem, o tempo refrescou ligeiramente e ontem, ao cair da
tarde, o céu encheu-se de nuvens, o vento cresceu e a chuva ameaçou cair, caindo
mesmo um pouquinho.
Regressei de Lisboa onde fui festejar os cinquenta e quatro anos
civis,... Com igual número de solares e contando já com treze bissextos. É
muito para uma vida, mas promissor para uma vida ainda maior, que Nosso Senhor
me poderá dar se para aí estiver virado... e está... porque Nosso Senhor é um
girassol perpétuo a girar, tal um farol sempre aceso raiando em todas as
direcções. Obrigado meu Deus pela luz que me dás no raio que me dedicaste.
As obras continuam. Ontem, mestre Francisco Grincho deu os últimos
remates no soalho do segundo andar. Há que compor a lareira. Vai ser colocada
baldosa sobre rede, com fina camada de cimento, para ficar leve e consolidada.
Não esqueceremos as duas boas lajes de granito, ao centro, as que já tinha,
para garantir um bom lume multifacetado e colorido. A chaminé tem uma tiragem
esplêndida, onde o poder mágico do Fogo
nos irá oferecer longos serões de cavaco e de trabalho de criação. Que
Bachelard nos ensine a desvendar o enigma do Fogo sagrado do tempo!...
jdact
Do tempo? Sim... Dum tempo bonito e aliciante. Não apenas do tempo cronológico,
fictício, do cronos, que aproxima os povos na disciplina do horário e nos
compromissos dos homens, onde o tempo do lançamento do foguetão e da nave conta
sempre para um devir indeciso pela incerteza do sucesso e onde a tragédia ronda
tal como o Diabo à solta. Mas não há-de ser nada. O homem é dialéctico e como
tal optimista. No entanto, cuidado com os micro-segundos das fatais decisões.
Verdadeiramente, para o homem, é o tempo psicológico que mais conta:
- ‘o meu tempo, o teu tempo, o nosso tempo, o tempo de cada um. Tempo e espaço convidam-se mutuamente numa caridade hospitaleira, bem necessária para a harmonia do mundo-homem’.
O espaço convida o tempo a preenchê-lo. O tempo é másculo, o espaço
fêmea. O tempo pede ao espaço para que se alargue na garantia perpétua dum
infinito necessário. A verdade é cada vez mais certa, na certeza dum nunca ser.
Temos assim a garantia perpétua da imortalidade humana na maratona da criação
dum novo mundo, sempre recriado no compasso da ressurreição. É maravilhoso podermos afirmar que o homem
é, a cada instante, o novo homem, o homem mais, que contém em-si a pomba, cada vez
mais branca e translúcida do espírito santo, ámen, da coisa-em-si.
O vento lá fora canta. Começo a adormecer. Boa noite Bachelard de ‘La poètique de l'éspace’. Boa noite meus
irmãos». In Manuel Nemésio, Construção da Casa do Ser (ou Roteiro Sentimental
de Castelo de Vide), Edições Colibri, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-39-5.
Cortesia de E. Colibri/JDACT