quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Construção da Casa do Ser. Manuel Nemésio. Leituras. «É maravilhoso podermos afirmar que o homem é, a cada instante, o novo homem, o homem mais, que contém em-si a pomba, cada vez mais branca e translúcida do espírito santo, ámen, da coisa-em-si»

29-07-84
«Apenas e só, sem mente, quatro horas da madrugada. Depois dum grande dia de calor, anteontem, o tempo refrescou ligeiramente e ontem, ao cair da tarde, o céu encheu-se de nuvens, o vento cresceu e a chuva ameaçou cair, caindo mesmo um pouquinho.
Regressei de Lisboa onde fui festejar os cinquenta e quatro anos civis,... Com igual número de solares e contando já com treze bissextos. É muito para uma vida, mas promissor para uma vida ainda maior, que Nosso Senhor me poderá dar se para aí estiver virado... e está... porque Nosso Senhor é um girassol perpétuo a girar, tal um farol sempre aceso raiando em todas as direcções. Obrigado meu Deus pela luz que me dás no raio que me dedicaste.
As obras continuam. Ontem, mestre Francisco Grincho deu os últimos remates no soalho do segundo andar. Há que compor a lareira. Vai ser colocada baldosa sobre rede, com fina camada de cimento, para ficar leve e consolidada. Não esqueceremos as duas boas lajes de granito, ao centro, as que já tinha, para garantir um bom lume multifacetado e colorido. A chaminé tem uma tiragem esplêndida, onde o poder mágico do Fogo nos irá oferecer longos serões de cavaco e de trabalho de criação. Que Bachelard nos ensine a desvendar o enigma do Fogo sagrado do tempo!...

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Do tempo? Sim... Dum tempo bonito e aliciante. Não apenas do tempo cronológico, fictício, do cronos, que aproxima os povos na disciplina do horário e nos compromissos dos homens, onde o tempo do lançamento do foguetão e da nave conta sempre para um devir indeciso pela incerteza do sucesso e onde a tragédia ronda tal como o Diabo à solta. Mas não há-de ser nada. O homem é dialéctico e como tal optimista. No entanto, cuidado com os micro-segundos das fatais decisões. Verdadeiramente, para o homem, é o tempo psicológico que mais conta:
  • ‘o meu tempo, o teu tempo, o nosso tempo, o tempo de cada um. Tempo e espaço convidam-se mutuamente numa caridade hospitaleira, bem necessária para a harmonia do mundo-homem’.
O espaço convida o tempo a preenchê-lo. O tempo é másculo, o espaço fêmea. O tempo pede ao espaço para que se alargue na garantia perpétua dum infinito necessário. A verdade é cada vez mais certa, na certeza dum nunca ser. Temos assim a garantia perpétua da imortalidade humana na maratona da criação dum novo mundo, sempre recriado no compasso da ressurreição. É maravilhoso podermos afirmar que o homem é, a cada instante, o novo homem, o homem mais, que contém em-si a pomba, cada vez mais branca e translúcida do espírito santo, ámen, da coisa-em-si.
O vento lá fora canta. Começo a adormecer. Boa noite Bachelard de ‘La poètique de l'éspace’. Boa noite meus irmãos». In Manuel Nemésio, Construção da Casa do Ser (ou Roteiro Sentimental de Castelo de Vide), Edições Colibri, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-39-5.

Cortesia de E. Colibri/JDACT