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«Será que me contou a verdade, que só houve beijos e carícias com o
carcereiro? É pouco provável. Quando estão com os homens do seu presente, as
mulheres mentem muito sobre o seu passado. Além disso, era compreensível que,
naquelas circunstâncias, usar o corpo fosse uma saída. Sei do que falo, sei o
que vivi nas prisões árabes. Contudo, o que recordo melhor é o meu tremendo
incómodo. A ideia de alguém ter tocado nela uns dias antes de mim despertava-me
uma irracional raiva. Seria ciúme? Era certamente, e hoje acredito que foi
nesse momento que nasceram os meus fortes sentimentos por ela, a minha paixão.
Foi uma sensação tão violenta que me fez mal. Mas não a revelei e ouvi,
caladinho, o que ainda tinha para me contar.
[…]
Na manha de sábado, 1 de Novembro de 1755, feriado e Dia de
Todos-os-Santos, mal o carcereiro carrancudo lhe deixou a refeição matinal e
fechou a porta, irmã Margarida passou a corda pela viga do tecto e preparou um
laço. Virou o balde de madeira ao contrário, posicionou-o por baixo da forca e
deu início à cerimónia da sua própria morte. Nesse momento, viu de novo o fantasma,
o homem de negro, junto à porta. Parecia incentivá-la. Um arrepio de medo
percorreu-lhe o corpo, virou-se de costas e não voltou a olhar para lá. Já em
cima do balde, passou o laço à volta do pescoço e apertou-o, puxou a corda com
força para testar que aguentava o seu peso, rezou uma oração que a mãe lhe
ensinara em criança e depois saltou para a frente.
Sentiu um duro apertão na traqueia, e quando o corpo voltou para trás,
já embalado, os seus calcanhares bateram no balde, que caiu, rolando pelo chão.
Depois, a tensão da corda apertou o garrote no seu pescoço, a garganta sofreu
um esmagamento e entrou em pânico. Agarrou os dedos ao laço e procurou libertar-se,
mas não conseguiu. O seu peso puxava-a para baixo, abanava os pés e só encontrava
o vazio. O descontrolo apoderou-se dela, asfixiava, incapaz de se libertar. Viu
que o fantasma se aproximara, a sua sombra escura estava agora a seu lado. Um estranho
torpor invadiu-a, a cela ficou enevoada, desfocada. Começava a perder a
consciência, a ir-se embora deste mundo, como desejava.
De repente, a mão fria do fantasma tocou-lhe no braço, e era uma mão
gelada e branca, Uma mão morta. Esse instante de puro terror, provocou nela uma
rebelião inesperada. Contou- -me (muito excitada, esbracejando) que aquele
contacto a despertara para o erro absurdo que cometia! O seu corpo e o seu espírito,
confrontados com o fim físico, e com a própria presença da morte a seu lado, revoltavam-se,
e um súbito desespero, eufórico, tomou conta dela. Não porque quisesse morrer, mas
porque, afinal, descobria o quanto queria viver! Esse foi o seu derradeiro pensamento,
antes de sentir que o mundo à sua volta
desatava a tremer, que as paredes abanavam, que o barulho da chegada da morte
era avassalador. Parecia que a terra inteira estalava, num ribombar
ensurdecedor, como se mil carroças e mil cavalos estivessem a passar por ali ao
mesmo tempo. Os seus olhos semicerraram-se, a sombra escura do fantasma
desapareceu, e deduziu que morrera e em breve se encontraria com a mãe e com o
pai. Mas, pelas frestas das pálpebras, vislumbrou
pedras a voarem, como projécteis cuspidos em várias direcções, o tecto a
tombar, nuvens de pó a levantarem-se à sua roda, em turbilhão, e sentiu-se a
levantar voo, como se fosse uma pena levada pelo vento, e depois a cair, como
por um poço abaixo, subitamente solta da corda. Antes de perder a consciência,
pareceu-lhe que sobre ela caía também a cela inteira, como se Deus a quisesse
chupar para as entranhas da Terra, na companhia de uma enxurrada de argamassa e
caliça. Só quando acordou e se libertou dos escombros é que compreendeu:
- tinha sido salva de morrer enforcada por um tremor de terra.
In Domingos Amaral, Quando Lisboa Tremeu, Lisboa, 1755, o Dia de Todos
os Santos vai mudar a vida de 5 pessoas para sempre, Casa das Letras (Oficina
do Livro), 2010, ISBN 978-972-46-1986-6.
Cortesia de Casa das Letras/JDACT