«A Rainha partira na absoluta penúria. Nunca se soube, nem ela, o que
aconteceu ao dinheiro e jóias que tivera antes a ideia de enviar à irmã e aos
irmãos e isso, embora os cronistas não o refiram (e quantas vezes ouvi falar
sobre o assunto!), chocou algumas pessoas. Bem sei que a mãe do jovem rei foi
muito culpada da sua própria infelicidade, mas o cunhado, que sempre demonstrou
ser um homem leal, de palavra, ordeiro, até pacífico, não lhe perdoou um único
deslize. Foi como se o infante Pedro vingasse na cunhada todos os dissabores e
infâmias do sogro, da mulher e dos seus próprios infortúnios. Depois, claro,
existia o problema da regência, as pressões dos Braganças, o seu desmedido
orgulho, a sua tenebrosa e insaciável ambição. Em Pedro, o político, o
cesarista ultrapassavam o homem, os seus medíocres anseios pessoais, embora
seja humanamente impossível uma dicotomia total entre as duas partes. No
Barcelos apenas existia a barriga, os castelos, o poder de possuir terras,
gentes, ouro. A grande diferença é de qualidade. O rei Afonso, já velho e homem
da sua época, do século anterior, e o infante Pedro, homem do futuro, como
agora o concebemos na Europa, futuro que seu neto quis edificar, foram os dois
pilares do reino durante os dez anos da regência até Alfarrobeira. D. Leonor,
no meio, foi literalmente esmagada entre os dois colossos e as concepções de
poder que eles representavam.
Quando o infante morreu não estava mais rico do que antes da regência.
Pelo contrário, teria muitas dívidas porque o grosso do dinheiro havia-o ele
depositado no Monte de Florença, duzentos e oitenta mil cruzados em ouro.
Porquê? Por que guardava o Regente de Portugal o ouro na Itália, num banco
estrangeiro? Porque ele nunca pretendera ocupar indevidamente o trono
português, trair o rei seu sobrinho e genro e, portanto, a nação. O que Pedro
pretendeu fora apenas ter no momento próprio, o montante em ouro razoável que
lhe permitisse levar a bom termo uma campanha militar contra Castela e Aragão,
sustentar a Catalunha e reconquistar aquilo a que, por herança da mulher pelo
pai conde de Urgel, tinha direito. Para isso seria necessário arrumar a casa
primeiro. Isso ia contra o Tratado de Paz e Amizade que seu próprio pai e os infantes
tinham jurado com os Transtâmaras? Porque não? Em política o que conta é
ganhar, aplicar o programa, organizar o mundo. Ele não lera Cícero, e Séneca, e
a História de Ciro e Alexandre, e a de Vespasiano? A sua biblioteca pessoal
continha muitas centenas de obras de história antiga, como a do pai e a que
legou ao sobrinho, na Alcáçova, outras mais. Se Afonso, o quinto de nome, teve
a exemplar biblioteca que eu conheci, ao tio a deveu e não só apenas aos seus
gostos pessoais de homem sensível e culto, com um estilo primoroso e vastos
conhecimentos das letras e das ciências. Na realidade, se Afonso alguma coisa
tinha devia agradecer ao tio; além do trono e de uma infância e adolescência
sem guerras civis, não fora o que as ambições dos Braganças propiciaram, foi o
ensino da sublime arte da eloquência, o conhecimento profundo da cultura do seu
tempo e da Antiguidade que lhe serviram para elaborar as suas obras universalmente
citadas em sua vida e ainda hoje, como o fez Zacuto, antes de fugir de Portugal,
quando da grande expulsão. O rei Afonso pintava, segundo me confessou mestre
Guedelha, sabia apreciar a pintura mural e de cavalete, cultivava a música com
sentimento e amava a poesia e a arte de versejar. O seu principal bibliotecário,
à maneira dos Gregos e Latinos, no paço, foi Zurara.
D. Leonor, em Castela, arrasada, tenta, depois de perceber o logro em
que caíra, regressar a Portugal já perto da maioridade da filha. A saudade das
filhas matava-a aos poucos. Não consegue sequer contactá--las por carta e, se o
fez, as cartas não chegaram ao seu destino ou foram destruídas. De resto,
duvido que o Regente Pedro, que passou a exercer o poder absoluto, permitisse
que o jovem rei ou alguém perto dele pudesse ter acesso a tais lancinantes
pedidos. Também não sei se a rainha, conhecendo a sua situação e o desprezo do
cunhado, tentaria escrever directamente para a corte. Não o fez? Pelo menos
quando o fez, e isso não caiu no segredo, foi para Ceuta, para o então
governador, o outro filho do Barcelos, o conde de Arraiolos. Depois houve o
contacto por embaixadores. O infante Pedro não queria o regresso da cunhada. A
resposta foi diplomaticamente protelada. “El Rei e o povo desejam, sem sombra
de dúvidas, que se faça à Rainha D. Leonor tudo o que nestes Reinos se deve e
pode fazer”. Os embaixadores foram despedidos e o tio e o sobrinho dirigiram-se
para Tentúgal, no campo do Mondego. Aí o regente Pedro convocou como
embaixadores a Castela, Leonel de Lima, mais tarde visconde de Vila Nova de
Caminha e o Rui Gomes de Alvarenga, que partiram para Castela com informações
secretas, depois de industriados pelo Regente sobre o que deveriam de
responder. A Rainha, à míngua de tudo, sem avisos nem respostas, passara apenas
a ser uma peça sem valor, o peão apeado no tabuleiro do xadrez do Infante e da
própria família em Castela. Por motivos de paz interior e externa (o que certamente
também interessaria a Castela) D. Leonor de Aragão e Transtâmara, viúva de El
Rei Duarte, não deveria mais voltar ao Reino ‘e por ser madre d'El Rei e por El Rei o requerer, lhe dariarn onde ela quisesse
fora de Portugal, seu dote e arrás, e todas as coisas que neste reino se
achassem...’ Sei que Pina o repete e se limitou a repetir o que lhe mandaram
dizer, mas a verdade é que El Rei era muito miúdo para requerer o que quer que
fosse, a Rainha não mais viu as filhas, ficando apenas com a jovem infanta D.
Joana e nunca lhe foram remetidos nem dinheiro, nem prendas de dote nem coisa
alguma. Claro que D. Leonor soube também que João II de Castela, naturalmente,
nem viu os embaixadores e, se os viu, o seu valido Álvaro de Luna é que os
recebeu e tratou dos negócios. Era homem de confiança do Regente Pedro e
inimigo natural dos Transtâmaras». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica
Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa
2002, ISBN 972-23-1942-6.
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