25-07-84
«É quase uma da noite. O dia que passou foi rigoroso de trabalho, de
paciência e de confiança. Levantei-me cedo, cerca das seis e meia, já com a
claridade fresca das primeiras horas do raiar do Sol. Tudo a postos, tudo bem.
Custou-me um tanto saltar da cama, mas, de repente, aí vou eu, de botas
anti-cascalho e de fato de treino como quem se está a preparar afincadamente
para um decisivo combate de boxe: dez carros de entulho; parede do fundo da
casa-de-banho completamente descascada, com mais um arco em ogiva à vista que terá
de ser coberto a tijolo, com o carinhoso cuidado de o não danificar, com a
instalação de canos de água. Fica registada a descoberta arqueológica, a
terceira desde o início das obras. Não havia água desde sábado. Decidi ir tomar
banho à barragem e fazer uma barrela de roupa que pus a corar no dorso das
pedras paquidermes com um Sol radioso de brancura. Lembrei-me das pernas de
alva, por ali acima, das lavadeiras do Mondego, fruto da adolescência, curiosidade
de quem, excitado, procura o desconhecido com a marca do proibido. Por essa
altura, além da roupa, coravam também as mocinhas lavadeiras pelos piropos que
recebiam.
As mais velhas, às vezes as mães, já mais estragadas pela idade e pelo
peso diário dos açafates de roupa lavada, a distribuir pelas freguesas, donas
de casa, com quem regateavam o preço de cada peça, alegando o último aumento da
barra de sabão azul, enxotavam a garotada chamando-nos de desenvergonhados. Por
vezes atiravam-nos pedras e nós ríamos ao desafio indo tomar banho, nus, para a
ínsua do Vale d’Azenha, ou para os bocais de passagem junto aos moinhos do pão
do Mondego. Ao fim da tarde, regressava o bando, depois dum bom dia de pesca ao
peixe à toca em que o Midota era o exímio, trincando-os na boca, aos dois e
três, num só fôlego de mergulho. Santa vida aquela que por vezes redundava numa
tareia de minha Mãe por termos chegado tarde a casa, ou então num pequeno,
quase nulo, ralhete de meu Pai, que vinha preocupadíssimo ao nosso encontro
pelos Malheiros adiante e que, todo contente, por nos ter finalmente encontrado,
nos dava suavemente, e a compasso, com a bengala nos tacões, à laia de maestro.
Quando chegávamos a casa era jantar, lavar a focinheira e os pés e toca para a cama,
a sono solto; até de manhã.
Boa noite filhota. Boa noite minha gatinha do teu Manuel amoroso.
Amanhã faço cinquenta e quatro anos, noves fora nada, o que é importante. E a
minha netinha Inês faz o seu primeiro mês. Vou-lhe dar uma colher de prata que achei
no entulho por obra de milagre de Nossa Senhora d’Alegria. - Boa noite meus
filhos Gonçalo, Rui, Assunção, Kika, Nucha, Miguel e Pedro. Boa noite meu Santo
António que me olhas daí, dum cestinho da pesca, enquanto aguardas que te faça
o teu novo altarzinho, em substituição do antigo, que foi hoje tapado com
tijolo e cimento pelo mestre José Parrichon para assentar a madre e os barrotes
de castanho velho para suporte do soalho da lareira que será colocado e travado
pela mão certeira de mestre Francisco Grincho. Boa noite a todos e à noite
também que mansamente nos cobre com um manto de bom sonho.
Tem graça, nunca sonhei senão a preto e branco! A minha filha Nucha
sonha sempre a cores, é mais moderna, mais contemporânea. E já agora, a
propósito de cores, que magnífico aquele livrinho, dum astrofísico canadiano,
ao alcance de todos: "um pouco mais de azul", com um extenso e
infindável mundo estelar de milhões anos-luz, enquanto, cá em baixo, a meia altura,
o Principezinho de Saint-Exupéry prepara cuidadosamente a recepção desses fascinantes
raios de luz, limpando as crateras dos vulcões com um escovilhão. Do mundo estelar,
onde o caos tende para o cosmos, ao meu pequeno mundo da casa do Terreiro da
Senhora d’Alegria, a distância não é grande. O cosmos surgirá um dia. Para já,
a revolução, mas a revolução pacífica dum filósofo de carapuça, deitado em cama
de través com elegantes pernas de cadeiras acima do horizonte, como se estivessem
no céu, ou a caminho. Uma delas, a austríaca de balanço, já voou ligeira e já
brilha no firmamento como estrela de primeira grandeza. Bengalas, tachos de
cobre, tapetes de trapos de Coimbra, dois lavatórios de ferro e algumas teias
de aranha completam o cenário deste céu fictício donde eu sou o centro, o
egocentro um tanto excêntrico, com este ar distraído de filósofo aprendiz. E os
quadrinhos na parede!... Tão românticos: Pai, Mãe e Filha, sentados, com punhos
de renda e vestidinhos de folhos, olhando embevecidos para o cão fiel que marca
o compasso da harmonia. Entretanto, no chão, além do penico, tenho vários pares
de calçado para as solenidades múltiplas dum dia em Castelo de Vide. Uma fina
camada de pó chama a atenção para uma escova que faz prodígios. Limpa fatos e tudo
e o pó esvoaça dumas coisas para as outras de modo idêntico à fecundação das
flores. Esta desordem é simplesmente magnífica. Opera e sobreleva a ordem hierárquica
do acaso sobre a causa e o efeito, programados pelos enfadonhos computadores
sem vida, accionados a botão e tecla. Ora, que eu saiba, botões, só de rosas ou
então de camisas e de cuecas à moda antiga, e teclas, só de piano ou de órgão
onde o artista dedilha o maravilhoso número sete do diapasão de Frederico
Chopin e de João Sebastião Bach.
E por hoje basta... quedemo-nos um pouco na música pura: o Silêncio Absoluto».
In Manuel Nemésio, Construção da Casa do Ser (ou Roteiro Sentimental de Castelo
de Vide), Edições Colibri, Lisboa, 1996, ISBN 972-8288-39--5.
Cortesia de E. Colibri/JDACT