«A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar
dentro do qual estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha.
Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável,
nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a
própria presença do real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas
veio confirmar a objectividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa
felicidade nua e inteira, esse esplendor da presença das coisas. E também a
reconheci, intensa, atenta e acesa na pintura de Amadeu de Sousa Cardoso. Dizer
que a obra de arte faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e
artificial. A obra de arte faz parte do real e é destino, realização, salvação
e vida.
Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi
sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real
fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu,
evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a
pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de
verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o
espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento
do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma
questão de atenção, de sequência e de rigor.
E é por isso que a poesia é uma moral. E é por isso que o poeta é levado
a buscar a justiça pela própria natureza da sua poesia. E a busca da justiça é
desde sempre uma coordenada fundamental de toda a obra poética. Vemos que no
teatro grego o tema da justiça é a própria respiração das palavras. Diz o coro
de Ésquilo:
- ‘Nenhuma muralha defenderá aquele que, embriagado com a sua riqueza, derruba o altar sagrado da justiça’.
Pois a justiça se confunde com aquele equilíbrio das coisas, com aquela
ordem do mundo onde o poeta quer integrar o seu canto. Cofunde-se com aquele
amor que, segundo Dante, move o Sol e os outros astros. Confunde-se com a nossa
confiança na evolução do homem, confunde-se com a nossa fé no universo. Se em frente
do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixão, também em frente do sofrimento
do mundo nos revoltamos com paixão. Esta lógica é íntima, interior, consequente
consigo própria, necessária, fiel a si mesma. O facto de sermos feitos de
louvor e protesto testemunha a unidade da nossa consciência.
A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de
nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida,
integra-se no tempo vivido. E o tempo em que vivemos é o tempo duma profunda
tomada de consciência. Depois de tantos séculos de pecado burguês a nossa época
rejeita a herança do pecado organizado. Não aceitamos a fatalidade do mal. Como
Antígona a poesia do nosso tempo diz:
- 'Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres’.
Há um desejo de rigor e de verdade que é intrínseco à íntima estrutura
do poema e que não pode aceitar uma ordem falsa.
O artista não é, e nunca foi, um homem isolado que vive no alto duma
torre de marfim. O artista, mesmo aquele que mais se coloca à margem da
convivência, influenciará necessariamente, através da sua obra, a vida e o
destino dos outros. Mesmo que o artista escolha o isolamento como melhor
condição de trabalho e criação, pelo simples facto de fazer uma obra de rigor,
de verdade e de consciência ele irá contribuir para a formação duma consciência
comum. Mesmo que ele fale somente de pedras ou de brisas a obra do artista vem sempre
dizer-nos isto: que não somos apenas animais acossados na luta pela
sobrevivência mas que somos, por direito natural, herdeiros da liberdade e da
dignidade do ser.
Eis-nos aqui reunidos, nós escritores portugueses, reunidos por uma
língua comum. Mas acima de tudo estamos reunidos por aquilo a que o padre
Teilhard de Chardin chamou a nossa confiança no progresso das coisas. E tendo começado por saudar os amigos presentes quero, ao terminar,
saudar os meus amigos ausentes: porque não há nada que possa separar aqueles
que estão unidos por uma fé e por uma esperança. Palavras ditas em 11 de
Julho de 1964 no almoço promovido pela Sociedade Portuguesa de Escritores por
ocasião da entrega do Grande Prémio de Poesia atribuído a “Livro Sexto”». In Sophia
de Mello Breyner Andresen, Obra Poética, Editorial Caminho, 1995, ISBN
972-21-0532-9.
Cortesia de E. Caminho/JDACT