O Reencontro
«Abertas as portas da cidade formou-se o cortejo solene. À frente ia João Peculiar Arcebispo de Braga e Primaz
das Espanhas, amigo e conselheiro de Afonso Henriques, seguido do
restante clero, com o estandarte da Cruz do Senhor. Compunham a comitiva real os
que, estando com o rei, tinham sido escolhidos para o acompanhar; entre eles
estava Fernão Afonso, de sete anos, filho primogénito do rei,
nascido da união com D. Flâmula Gomes, viúva de Paio Soares, irmão de Pêro
Pais, Alferes-mor do reino, antes de casar com a rainha Mafalda de Sabóia e
Gualdim Pais, cavaleiro templário.
Celebrada a missa no terreiro da Alcáçova, o estandarte da cruz foi
colocado no topo da mais alta torre da barbacã, para que, de toda a parte,
fosse visto como símbolo do domínio da cidade. O rei passeou a pé pelas muralhas
da cidadela. Renato, sempre junto de seu pai, Mestre de armas, seguiu com a
comitiva. Durante o percurso, qual não é o espanto d'El-Rei Afonso Henriques ao
verificar que alguns cruzados saciaram os apetites, saqueando o que foi
possível, arrombando portas e entrando no interior das casas, destruindo roupas
e utensílios, violando mulheres e tratando as virgens vergonhosamente, contra o
juramento que antes haviam prestado junto da sua pessoa.
- De quem foi mister este trabalho?
- Perguntou Sua Majestade. Raimundo Moniz, o pai de Renato, chegou-se junto do
rei e afirmou:
- Senhor, contra o que vós
determinastes e contra o direito divino e humano, os colonienses e os flamengos
agiram desta forma, abandonaram a cidade e regressaram às suas terras. Afonso
Henriques olhou consternado à sua volta, e verificou que os cruzados normandos
e ingleses permaneciam firmes nos seus postos, conforme determinado, preferindo
manter as mãos limpas. Tomou então a palavra e disse:
- Aqueles que quiserem ficar
podem fazê-lo extramuros, na encosta de Poente. Montai guarda aos celeiros
desta praça-forte! – e continuou, logo estabelecendo a forma como a guarnição
árabe deveria deixar o castelo.
Os dias eram cada vez mais curtos e sentia-se ainda a humidade da chuva
que caíra miudinha durante quase toda a tarde, deixando as estreitas ruas
cheias de lama até à altura dos tornozelos. Estava uma noite de lua cheia. Com
o cair da penumbra, a comitiva real tinha-se instalado no Alcáçar (residência
do governador muçulmano), tendo ficado na guarda da cidade uma guarnição de
companheiros de armas chefiados por Raimundo Moniz.
No acampamento tudo estava silencioso. Distinguiam-se apenas os
contornos das tendas de campanha, iluminadas pela luz ténue das candeias e os
vultos das sentinelas que guardavam a tenda real, agora desabitada. Renato teve
curiosidade de verificar a degradação da cidade. O seu dever a isso o obrigava,
ajudar os mais fracos. Do alto do Monte da Graça observava o castelo que tinha
por fundo o Tejo. A noite estava chuvosa, mas o céu achava-se limpo (?),
iluminado pelo grande astro branco.
Cobriu-se com a capa que a mãe lhe oferecera antes de morrer e com o
calor da sua respiração, tentou aquecer as mãos que lhe congelavam. Um suspiro
brotou-lhe do pensamento, sentia saudades dela agora que estava sozinho com seu
pai. Faltava-lhe a alegria daquele sorriso jovial, que conservava em memória no
seu coração. Tinham já passado dois anos, e parecia ainda sentir o cheiro do
pão quente acabado de cozinhar no forno a lenha e dos petiscos que inundavam a
casa de satisfação... mas quis o destino que assim fosse... e contra isso ele
nada podia fazer.
Entrou pela porta oriental e nas ruas da Al-hama (o topónimo
Alfama é frequentemente atribuído à evolução do árabe Al-hama, que
significa fonte termal, embora não haja consenso quanto à origem etimológica),
viam-se aqueles a quem a sorte não sorriu; homens e mulheres pobres, velhos
moribundos e algumas famílias desalojadas, buscando o consolo de uma noite
aquecida. Alguns conseguiram salvar parte dos seus haveres, outros haviam
perdido tudo e olhavam, desolados, as chamas que lhes consumiam as casas.
Choros, tristezas e mágoas conjugavam-se num cenário de desespero.
Ao passar por uma rua junto à mesquita, onde estavam os feridos, doentes
e mortos, ouviu um canto de lamento, em tom monocórdico, dentro de uma casa
pequena situada junto à muralha. Atraído pelo som, aproximou-se da porta e reparou
no umbral que tinha um desenho em forma de estrela, com seis pontas. Abriu a
porta de madeira lentamente e viu uma família em volta de uma mesa, frente a
uma lareira. O lume crepitante trouxe-lhe boas recordações. Podia ver um homem
mais velho, a quem os rugas carregadas faziam transparecer algumas mágoas, mas
também sabedoria. Junto dele reconheceu o jovem de pele clara e cabelo escuro,
que tinha salvo das mãos do coloniense nesse mesmo dia. Entreolharam-se e num
gesto automático, Renato fechou a porta lentamente procurando não fazer
barulho.
Desceu a encosta mais um pouco e sentiu o calor da fonte de água quente
nas alcaçarias. Aproximou-se, pôs as mãos na água e colocou-as, quentes,
debaixo dos sovacos. Ouviu um barulho... os patrulheiros faziam a ronda.
Acompanhou-os até ao acampamento e deitou-se.
Uns anos depois encontrava-se em Cintra com seu pai, que tinha passado
ao serviço de Gualdim País, por recomendação d'El-Rei. Depois do cerco à vila
de Cintra, os habitantes fizeram a entrega da cidade a Afonso Henriques, juntamente
com a guarnição, sem derramamento de sangue». In Maria João Martins Pardal e
Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN
972-8605-58-7.
continua
Cortesia de Ésquilo/JDACT