sábado, 17 de novembro de 2012

A Comenta Secreta. Que segredos guardam Afonso Henriques e o mestre templário Gualdim Pais? Maria João Pardal e Ezequiel Marinho. «Os dias eram cada vez mais curtos e sentia-se a humidade da chuva que caíra miudinha durante quase toda a tarde, deixando as estreitas ruas cheias de lama. Estava uma noite de lua cheia. Com o cair da penumbra, a comitiva real tinha-se instalado no Alcáçar»


jdact e cortesia de wikipedia

O Reencontro
«Abertas as portas da cidade formou-se o cortejo solene. À frente ia João Peculiar Arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas, amigo e conselheiro de Afonso Henriques, seguido do restante clero, com o estandarte da Cruz do Senhor. Compunham a comitiva real os que, estando com o rei, tinham sido escolhidos para o acompanhar; entre eles estava Fernão Afonso, de sete anos, filho primogénito do rei, nascido da união com D. Flâmula Gomes, viúva de Paio Soares, irmão de Pêro Pais, Alferes-mor do reino, antes de casar com a rainha Mafalda de Sabóia e Gualdim Pais, cavaleiro templário.
Celebrada a missa no terreiro da Alcáçova, o estandarte da cruz foi colocado no topo da mais alta torre da barbacã, para que, de toda a parte, fosse visto como símbolo do domínio da cidade. O rei passeou a pé pelas muralhas da cidadela. Renato, sempre junto de seu pai, Mestre de armas, seguiu com a comitiva. Durante o percurso, qual não é o espanto d'El-Rei Afonso Henriques ao verificar que alguns cruzados saciaram os apetites, saqueando o que foi possível, arrombando portas e entrando no interior das casas, destruindo roupas e utensílios, violando mulheres e tratando as virgens vergonhosamente, contra o juramento que antes haviam prestado junto da sua pessoa.
 - De quem foi mister este trabalho? - Perguntou Sua Majestade. Raimundo Moniz, o pai de Renato, chegou-se junto do rei e afirmou:
 - Senhor, contra o que vós determinastes e contra o direito divino e humano, os colonienses e os flamengos agiram desta forma, abandonaram a cidade e regressaram às suas terras. Afonso Henriques olhou consternado à sua volta, e verificou que os cruzados normandos e ingleses permaneciam firmes nos seus postos, conforme determinado, preferindo manter as mãos limpas. Tomou então a palavra e disse:
 - Aqueles que quiserem ficar podem fazê-lo extramuros, na encosta de Poente. Montai guarda aos celeiros desta praça-forte! – e continuou, logo estabelecendo a forma como a guarnição árabe deveria deixar o castelo.
Os dias eram cada vez mais curtos e sentia-se ainda a humidade da chuva que caíra miudinha durante quase toda a tarde, deixando as estreitas ruas cheias de lama até à altura dos tornozelos. Estava uma noite de lua cheia. Com o cair da penumbra, a comitiva real tinha-se instalado no Alcáçar (residência do governador muçulmano), tendo ficado na guarda da cidade uma guarnição de companheiros de armas chefiados por Raimundo Moniz.
No acampamento tudo estava silencioso. Distinguiam-se apenas os contornos das tendas de campanha, iluminadas pela luz ténue das candeias e os vultos das sentinelas que guardavam a tenda real, agora desabitada. Renato teve curiosidade de verificar a degradação da cidade. O seu dever a isso o obrigava, ajudar os mais fracos. Do alto do Monte da Graça observava o castelo que tinha por fundo o Tejo. A noite estava chuvosa, mas o céu achava-se limpo (?), iluminado pelo grande astro branco.
Cobriu-se com a capa que a mãe lhe oferecera antes de morrer e com o calor da sua respiração, tentou aquecer as mãos que lhe congelavam. Um suspiro brotou-lhe do pensamento, sentia saudades dela agora que estava sozinho com seu pai. Faltava-lhe a alegria daquele sorriso jovial, que conservava em memória no seu coração. Tinham já passado dois anos, e parecia ainda sentir o cheiro do pão quente acabado de cozinhar no forno a lenha e dos petiscos que inundavam a casa de satisfação... mas quis o destino que assim fosse... e contra isso ele nada podia fazer.
Entrou pela porta oriental e nas ruas da Al-hama (o topónimo Alfama é frequentemente atribuído à evolução do árabe Al-hama, que significa fonte termal, embora não haja consenso quanto à origem etimológica), viam-se aqueles a quem a sorte não sorriu; homens e mulheres pobres, velhos moribundos e algumas famílias desalojadas, buscando o consolo de uma noite aquecida. Alguns conseguiram salvar parte dos seus haveres, outros haviam perdido tudo e olhavam, desolados, as chamas que lhes consumiam as casas. Choros, tristezas e mágoas conjugavam-se num cenário de desespero.
Ao passar por uma rua junto à mesquita, onde estavam os feridos, doentes e mortos, ouviu um canto de lamento, em tom monocórdico, dentro de uma casa pequena situada junto à muralha. Atraído pelo som, aproximou-se da porta e reparou no umbral que tinha um desenho em forma de estrela, com seis pontas. Abriu a porta de madeira lentamente e viu uma família em volta de uma mesa, frente a uma lareira. O lume crepitante trouxe-lhe boas recordações. Podia ver um homem mais velho, a quem os rugas carregadas faziam transparecer algumas mágoas, mas também sabedoria. Junto dele reconheceu o jovem de pele clara e cabelo escuro, que tinha salvo das mãos do coloniense nesse mesmo dia. Entreolharam-se e num gesto automático, Renato fechou a porta lentamente procurando não fazer barulho.
Desceu a encosta mais um pouco e sentiu o calor da fonte de água quente nas alcaçarias. Aproximou-se, pôs as mãos na água e colocou-as, quentes, debaixo dos sovacos. Ouviu um barulho... os patrulheiros faziam a ronda. Acompanhou-os até ao acampamento e deitou-se.


Uns anos depois encontrava-se em Cintra com seu pai, que tinha passado ao serviço de Gualdim País, por recomendação d'El-Rei. Depois do cerco à vila de Cintra, os habitantes fizeram a entrega da cidade a Afonso Henriques, juntamente com a guarnição, sem derramamento de sangue». In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.

continua
Cortesia de Ésquilo/JDACT