sábado, 17 de novembro de 2012

História das Nossas Avós. Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930). Cecília Barreira. «Numa cidade que vive em função do cinema, as suas habitantes estão na vida como se estivessem na tela. O que desde logo se encontra é a noção de que as mulheres são espontâneas, decididas e saudáveis o que retira o carácter negativo que à emancipada normalmente se atribuía»




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«Clément Vautel é um autor extremamente crítico e irónico em relação à emancipada. Num dos seus romances, Minha Mulher Não Quer Filhos, título já por si sugestivo de uma atitude inovadora perante o modelo tradicional de mãe/esposa, Vautel apresenta a protagonista como uma mulher fútil, egoísta, e imoral. Gozar a manhã na cama; a tarde num chá da moda, numa sala de concertos, no costureiro, na modista, em qualquer potiniere mundana ou no dancing, a noite no teatro, no music-hall ou no cabaré: tal era o seu programa.
De uma forma geral os romances estrangeiros mais lidos apresentavam uma visão maniqueísta da realidade. Isto é, a mulher na sua sede de emancipação torna-se fútil, imoral, desligada do lar e da família. Em oposição ao caminho da dignidade identificado com o papel tradicional, aparece a mulher perdida e esvaziada de objectivos espirituais. No caso da protagonista de Minha Mulher Não Quer Filhos refere-se o facto de esta se ter recusado ao marido na própria noite de núpcias, o que revela uma autonomia e um sentido de recusa dos modelos tradicionais de comportamento.
Em conclusão, e ainda a propósito deste romance, a imagem da amante é dignificada face a uma feição tão negativa da esposa, na medida em que assume o papel tradicional de mulher contemplativa e dócil.
A mulher moderna, que nos países estrangeiros começa a interessar-se pelo desporto, e ridicularizada por Vautel, na medida em que essa actividade era considerada eminentemente masculina. Por exemplo, em Uma Mulher de Temperamento, apresenta-nos uma jovem de cabelos curtos, à garçonne, que adora actividades como o salto á vara ou o futebol e que é retratada como uma excêntrica que usa camisola e saia pelos joelhos.
No mesmo romance, a mãe da jovem, que até determinada altura mantivera uma postura de dona de casa exemplar, sofre uma alteração de comportamento, passando a levar uma vida de artista. Estes modelos femininos transmitidos através de obras de autores franceses são por sua vez alvo de crítica por parte dos autores portugueses que os acham perniciosos. Por exemplo, em Uma Divorciada de Sousa Costa, a protagonista é especialmente influenciada pelas nleituras de autores franceses, o que lhe inspira atitudes ousadas. E evidente que essa crítica tem subjacente o reconhecimento do esboço da influência estrangeira nos comportamentos.
Em contraposição com estas atitudes moralistas mais radicais, existem outras fontes que disponibilizam informações não tão catastróficas sobre a mulher estrangeira. António Ferro foi um dos autores que ao debruçar-se sobre essa realidade se mostrou mais entusiasta com as transformações existentes.
Em Hollywood Capital das Imagens, as mulheres surgem-nos conduzindo os seus automóveis e fumando cigarros longos, sinal de uma independência impensável no Portugal dos anos 20.

  • Numa cidade que vive em função do cinema, as suas habitantes estão na vida como se estivessem na tela. O que desde logo se encontra é a noção de que as mulheres são espontâneas, decididas e saudáveis o que retira o carácter negativo que à emancipada normalmente se atribuía. A beleza impera sobre tudo o mais, ofuscando a vulgaridade das pessoas comuns. Irreais, distantes, tão irreais e tão distantes na vida como no ecrã...

O paradigma da mulher em António Ferro é o da mulher-menina consubstanciado em Mary Pickford, boneca frágil, que procura nos homens o apoio paterno. Em contraposição à mulher-menina surge a mulher-mãe, Belle Bennett, de uma grande calma, não perturbando nem comovendo, apenas irradiando paz e segurança em seu redor». In Cecília Barreira, História das Nossas Avós, Retrato da Burguesa em Lisboa (1890-1930), Edições Colibri, Colecção Sociedade & Quotidiano, 1994, ISBN 972-8047-63-0.

Cortesia de E. Colibri/JDACT