«Como homem de negócios era, todavia, péssimo e, no fundo, não gostava
da vida activa, a que chamava ‘o menos
cómodo dos suicídios’. Em 1929, se não já no ano anterior, voltou ao seu Desassossego,
cujo carácter se alterou porque ele próprio mudara: Pessoa estava pronto para escrever Pessoa. Ainda recorria a
heterónimos, alegando que estes podiam sentir o mundo de forma mais completa do
que ele sozinho, mas eram claramente os seus próprios sentimentos,
irreprimíveis, que habitavam os poemas do Campos
tardio e a prosa de Bernardo Soares,
nome que Pessoa passou a atribuir ao
ajudante de guarda-livros e suposto autor do Livro do Desassossego. Soares, empregado num armazém de fazendas,
nem sequer tinha o estatuto de um heterónimo a cem por cento, não por ser menos
real do que Álvaro de Campos ou Alberto Caeiro, mas justamente pelo
motivo contrário. Era mais Pessoa, e
não um verdadeiro ‘outro eu’. Assim, Pessoa conferiu-lhe o
estatuto de ‘semi-heterónimo’, dotado de uma personalidade ‘não diferente da minha, mas uma simples
mutilação dela’, como explicou na sua célebre carta de 1935 sobre a génese
dos heterónimos. O barão de Teive, que surgiu em 1928, tinha muitas afinidades
com Soares e, para todos os efeitos, era também um semi-heterónimo, um Pessoa ‘mutilado’ que encarnava as suas pretensões
aristocráticas e, sobretudo, a frustração de não conseguir levar ao cabo as
obras que queria escrever.
E que destino teve Vicente Guedes, que durante muitos anos fora ‘responsável’,
pelo Livro do Desassossego?
Sumiu-se. Foi esvaziado, das suas funções e de tudo o resto. Bernardo Soares
não só lhe ‘roubou’ a autoria do Livro como se apoderou da sua
biografia: tinha a mesma profissão que o seu antecessor, a sua escrita era
também, e sobretudo, a de um diarista, morava igualmente na Baixa lisboeta e
num quarto andar, só que na Rua dos Douradores em vez de na Rua dos Retroseiros,
e até pilhou algumas memórias de infância de Guedes, pois lembrava-se, tal como
este, dos serões passados entre velhas tias, em miúdo. É possível
distinguir Guedes de Soares, sendo o primeiro, que escrevia antes de 1920, mais
friamente racional, algo distante do seu próprio mal existencial, e o segundo,
que escreveu entre 1929 e 1935, mais emotivo, incapaz de se subtrair à sua angústia
profunda. Sucede, porém, que esta mesma distinção pode ser estabelecida entre o
Álvaro
de Campos dos primeiros tempos (1914-1916) e aquele que surge a partir
da “Tabacaria”,
escrito em 1928, ou até entre a primeira poesia ortónima e a dos últimos anos. Tudo
é, afinal de contas, Fernando Pessoa, que ia mudando ao longo dos
anos, e com ele as suas personalidades literárias.
O fenómeno da heteronímia, a implacável atomização do ser, a total negação
de um eu uno e coeso, é fundamental para compreendermos a obra de Pessoa, mas
não vale a pena preocuparmo-nos excessivamente com questões de ‘autoria’ específicas:
se um determinado trecho sobre o Neopaganismo é de Ricardo Reis ou de António
Mora, ou se tal poema é atribuível a Campos ou a Caeiro. O próprio Pessoa
mudava essas atribuições, sendo os seis poemas de “Chuva Oblíqua” o caso
mais notório:
- inicialmente pertencentes a Alberto Caeiro, passaram para Álvaro de Campos, foram publicados em 1915 como uma obra do próprio Pessoa e chegaram a ser ainda atribuídos, bem mais tarde e por um brevíssimo período, a Bernardo Soares.Pe ssoa tinha, evidentemente, o direito de mudar de ideias, e a sua vontade de transferir integralmente a autoria do Livro do Desassossego para Bernardo Soares ficou claramente registada.
No final dos anos 20, o nome de Vicente Guedes deixou de aparecer em
projectos, apontamentos ou cartas onde o Livro
é referido; Pessoa excluiu três pequenos trechos que nomeiam Guedes do grande
envelope onde, nos últimos anos de vida, reuniu material para o Livro, e incluiu, no mesmo envelope, um
frontispício identificando Soares como único autor da obra, e Fernando Pessoa
como autor do autor.
Há, ainda, um plano dactilografado em que Bernardo Soares consta como autor não só dos textos que
supostamente escreveria na Rua dos Douradores, a partir de 1929, mas também de ‘trechos
vários’, mais antigos, tais como ‘sinfonia de uma Noite Inquieta’, ‘Marcha Fúnebre para o Rei Luís
Segundo da Baviera’ e ‘Na Floresta do Alheamento’. É este
mesmo plano que atribui ‘Chuva Oblíqua’ e outros poemas a Soares, decisão de
imediato revogada». In Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, Assírio
& Alvim, edição de Richard Zenith, 2006, ISBN 978-972-37-1121-9.
Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT