O Anacronista
As crónicas de jornal são filhas
de Cronos, de quem se diz que se alimenta da própria descendência. Por isso as
crónicas de jornal duram um dia e morrem. Nem sempre, no entanto, as crónicas
descansam em paz. Às vezes, no fundo das páginas onde jazem e amarelecem, algo
parecido com uma réstea de vida, será alguma misteriosa forma de alma, terão as
crónicas uma alma? Nelas continua a pulsar. Como se, para sempre passadas,
passassem ainda, e como se passar fosse o seu essencial e contraditório modo de
permanecer. O cronista lê-as de novo e julga entrever nos seus olhos, mesmo nos
olhos das mais resignadas, um sombrio e persistente apelo. Como poderia o
cronista eternamente enfrentar, dia após dia, esse olhar? E então o cronista
cede ao pecado do anacronismo, ordenando as desordenadamente segundo arbitrárias
genealogias e identidades, na inútil esperança de assim imitar o incerto e avulso
curso dos dias que é a sua morada, a morada da crónica e, também, a morada do
cronista. Um livro de crónicas de jornal é, pois, sempre, um livro de
anacrónicas, mesmo quando pelo caminho ficaram, fiéis às suas circunstâncias e
ao seu irrecuperável destino, muitas delas, se calhar por isso mesmo as mais
puras de todas.
Antes da crónica
Interrogo-me muitas vezes sobre o que será uma crónica de jornal. No
meio das dispersas solicitações e emoções de cada dia, arrastado, como toda gente,
no rio da vida tumultuosamente correndo fora de si e dentro de si, revoltado,
enternecido, surpreendido, ou tão só, também ele, vencido ou resignado, é
natural que o cronista em certos dias se detenha e que os seus olhos e o seu
coração, e as suas palavras, hesitem: que escrever e para quê? Em muitas
ocasiões, diante do papel ou do perplexo ‘écran’ do computador, me pergunto
isso mesmo: que escrever e para quê? E cada uma destas crónicas é talvez uma
resposta, indecisa e inconclusa, eu sei, a essa pergunta elementar.
Os jornais cansam-me: o primeiro-ministro faz promessas num comício; o presidente
passa férias no Algarve; os partidos da oposição promovem conferências de imprensa;
o secretário de Estado da Cultura diz que não disse e o ministro das Finanças
não diz; os maus bombardeiam Sarajevo e matam os bons; o papa convalesce de uma
operação; um grupo ‘rock’ canta em Lisboa... Estou sentado na sala, olhando o
gato que brinca aos meus pés, e penso que nenhuma coisa que possa vir em
jornais é tão séria e tão essencial como o seu grave e ruidoso conflito com o
saco de plástico.
Tenho tentado transformar os monótonos títulos de todas as primeiras páginas
em decassílabos e compor com eles díspares inventários surrealistas. A verdade
é que um verso, fosse eu capaz de escrever um bom verso! Ou um poema! Têm
certamente mais e mais óbvias hipóteses de durar do que um primeiro-ministro ou
um presidente! Verifique você mesmo: faça as contas aos primeiros-ministros e
aos presidentes, das centenas que têm sido, ao longo dos tempos e dos lugares, ‘manchette’
nas gazetas e nos jornais, de que é, ainda capaz de se lembrar e compare-os com
os versos, os poemas, os poetas, que mesmo sem ser um letrado, mesmo que apenas
vagamente, lhe virão à cabeça...
Outro dia caiu-me nas mãos um velho exemplar do ‘Diário de Notícias’, também
ele cheio de nomes de gente importante, ministros, deputados, militares,
comerciantes, de tragédias, de ‘fait divers’. E, todavia, o único acontecimento
que, em todo o jornal, me dizia ainda alguma coisa, umas poucas dezenas de anos
depois, era uma pequena nota de duas ou três linhas numa página interior: um
certo ‘sr. Mário de Sá-Carneiro’ tinha publicado um livro de versos! Daqui a 50
ou 100 anos, o mais que algum rato de Universidade conseguirá provavelmente
dizer sobre Cavaco Silva, depois de ter vasculhado em todos os arquivos, é que
foi um primeiro-ministro do tempo de Eugénio de Andrade...» In Jornal de Notícias, 2/9/92
continua
In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento,
1994, ISBN 972-36-0323-3.
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT