sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O Anacronista. Crónicas. Manuel António Pina. «Tenho tentado transformar os monótonos títulos de todas as primeiras páginas em decassílabos e compor com eles díspares inventários surrealistas. A verdade é que um verso, fosse eu capaz de escrever um bom verso! Ou um poema!»

jdact

O Anacronista
As crónicas de jornal são filhas de Cronos, de quem se diz que se alimenta da própria descendência. Por isso as crónicas de jornal duram um dia e morrem. Nem sempre, no entanto, as crónicas descansam em paz. Às vezes, no fundo das páginas onde jazem e amarelecem, algo parecido com uma réstea de vida, será alguma misteriosa forma de alma, terão as crónicas uma alma? Nelas continua a pulsar. Como se, para sempre passadas, passassem ainda, e como se passar fosse o seu essencial e contraditório modo de permanecer. O cronista lê-as de novo e julga entrever nos seus olhos, mesmo nos olhos das mais resignadas, um sombrio e persistente apelo. Como poderia o cronista eternamente enfrentar, dia após dia, esse olhar? E então o cronista cede ao pecado do anacronismo, ordenando as desordenadamente segundo arbitrárias genealogias e identidades, na inútil esperança de assim imitar o incerto e avulso curso dos dias que é a sua morada, a morada da crónica e, também, a morada do cronista. Um livro de crónicas de jornal é, pois, sempre, um livro de anacrónicas, mesmo quando pelo caminho ficaram, fiéis às suas circunstâncias e ao seu irrecuperável destino, muitas delas, se calhar por isso mesmo as mais puras de todas.

Antes da crónica
Interrogo-me muitas vezes sobre o que será uma crónica de jornal. No meio das dispersas solicitações e emoções de cada dia, arrastado, como toda gente, no rio da vida tumultuosamente correndo fora de si e dentro de si, revoltado, enternecido, surpreendido, ou tão só, também ele, vencido ou resignado, é natural que o cronista em certos dias se detenha e que os seus olhos e o seu coração, e as suas palavras, hesitem: que escrever e para quê? Em muitas ocasiões, diante do papel ou do perplexo ‘écran’ do computador, me pergunto isso mesmo: que escrever e para quê? E cada uma destas crónicas é talvez uma resposta, indecisa e inconclusa, eu sei, a essa pergunta elementar.
Os jornais cansam-me: o primeiro-ministro faz promessas num comício; o presidente passa férias no Algarve; os partidos da oposição promovem conferências de imprensa; o secretário de Estado da Cultura diz que não disse e o ministro das Finanças não diz; os maus bombardeiam Sarajevo e matam os bons; o papa convalesce de uma operação; um grupo ‘rock’ canta em Lisboa... Estou sentado na sala, olhando o gato que brinca aos meus pés, e penso que nenhuma coisa que possa vir em jornais é tão séria e tão essencial como o seu grave e ruidoso conflito com o saco de plástico.
Tenho tentado transformar os monótonos títulos de todas as primeiras páginas em decassílabos e compor com eles díspares inventários surrealistas. A verdade é que um verso, fosse eu capaz de escrever um bom verso! Ou um poema! Têm certamente mais e mais óbvias hipóteses de durar do que um primeiro-ministro ou um presidente! Verifique você mesmo: faça as contas aos primeiros-ministros e aos presidentes, das centenas que têm sido, ao longo dos tempos e dos lugares, ‘manchette’ nas gazetas e nos jornais, de que é, ainda capaz de se lembrar e compare-os com os versos, os poemas, os poetas, que mesmo sem ser um letrado, mesmo que apenas vagamente, lhe virão à cabeça...
Outro dia caiu-me nas mãos um velho exemplar do ‘Diário de Notícias’, também ele cheio de nomes de gente importante, ministros, deputados, militares, comerciantes, de tragédias, de ‘fait divers’. E, todavia, o único acontecimento que, em todo o jornal, me dizia ainda alguma coisa, umas poucas dezenas de anos depois, era uma pequena nota de duas ou três linhas numa página interior: um certo ‘sr. Mário de Sá-Carneiro’ tinha publicado um livro de versos! Daqui a 50 ou 100 anos, o mais que algum rato de Universidade conseguirá provavelmente dizer sobre Cavaco Silva, depois de ter vasculhado em todos os arquivos, é que foi um primeiro-ministro do tempo de Eugénio de Andrade...» In Jornal de Notícias, 2/9/92

continua
In Manuel António Pina, O Anacronista, Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.

Cortesia de E. Afrontamento/JDACT