Artifícios da História. Alteridade
e História
A abertura ao mundo e a prioridade portuguesa
«Não se pode considerar esta relação com o Outro como uma relação
sobre-determinada a não ser por meio de um inventário dos sistemas de valores
portugueses, dependentes de uma visão do mundo naturalmente restrita e não
podendo senão surpreender-se com a pujança das culturas outras. Nestas
condições, como se podia esperar que o encontro com o Outro decorresse sem
acidentes, sem violências, sem mortes,
de ambos os lados? Porque o etnocentrismo dos europeus chocou com o
etnocentrismo de árabes, de bérberes, de africanos.
Parecem, por isso, perigosamente simplificadas as diferentes propostas
de leitura que assentam num implícito: os europeus e sobretudo os portugueses e
os castelhanos são superiores aos outros povos e estão por isso autorizados a agir
para os integrar nos espaços europeus. Como se pode entender a noção de abertura
ao mundo? Será que anteriormente ao esforço português não existia essa abertura
e que a Europa esperou que portugueses e castelhanos, mais os primeiros do que
os segundos, abrissem as portas do conhecimento?
É certo que, pelo menos desde o século XIX, se tem multiplicado entre
nós uma organização da história que vai neste sentido, esquecendo não poucas vezes
a acção fecundadora dos europeus. Certos historiadores, como Jaime Cortesão,
hiper-exaltam os valores portugueses, separando-os do quadro geral do
conhecimento europeu, esquecendo até o sentido das referências feitas aos textos
e aos conhecimentos europeus. Quem não sabe o peso do livro de Marco
Pólo, trazido para Portugal pelo Infante Pedro, o das Sete
Partidas, tão tristemente morto em Alfarrobeira? Quem não sabe
que a nossa ciência cosmográfica recebeu um incentivo vigoroso dos sábios da
comunidade judia? Estas formas de irrigação científica são necessárias
e legítimas, mas elas traduzem uma lenta sedimentação dos conhecimentos
importados. É neste sentido que a definição do campo científico da Europa dos
séculos XIII a XVI é indispensável (e prioritária) ao estudo do processo dos
Descobrimentos.
Os portugueses pertencem, pois, ao grupo europeu que assume a tarefa de
assegurar a constante modernização do conhecimento, graças à qual vai ser possível
passar das técnicas de navegação do Mediterrâneo e dos mares do Norte, às
técnicas atlânticas.
O discurso imperial português não hesita em afirmar a hegemonia das práticas
portuguesas. Cabe ao historiador de hoje distinguir o que pertence ao núcleo
central do etnocentrismo daquilo que corresponde a uma contribuição modernizante,
que exerceu uma influência definitiva nos planos europeus e mundial. A glosa do
discurso português que se estrutura entre os séculos XV e XVI não pode
substituir a necessidade do rigor histórico que implica a leitura do discurso
europeu. Qual é a parte que nos cabe, sobretudo quando sabemos que não poucas
vezes esquecemos de escrever o que mais importava à Europa?
De maneira subtil, mas patriótica, procurou Jaime Cortesão explicar o
dificilmente explicável. Os responsáveis portugueses teriam adoptado uma política
de sigilo, destinada a assegurar o controlo das operações realizadas alhures.
Esta afirmação teórica esbarra com muitas e graves dificuldades, entre as quais
a presença de muitos estrangeiros nestas operações de descobrimento e de conquista.
Sem falar na maneira como o italiano Ramúsio pode obter manuscritos portugueses
cujos originais se perderam e dos quais só existe nos dias de hoje a tradução
italiana.
Esta situação coloca-nos perante uma enorme dificuldade: como
justificar esta abertura ao mundo quando na verdade as operações culturais provêm
do Mediterrâneo, onde os diferentes grupos humanos iam procedendo à acumulação
de conhecimentos? Talvez não fosse impossível dizer que a pressão do
conhecimento se desloca de leste para oeste, impondo modificações constantes
das técnicas e das ideologias.
Será ainda hoje legítimo falar em prioridade portuguesa no processo da
expansão europeia? Não seria mais legítimo sublinhar estarmos perante uma tarefa
peninsular, que ao sistematizar os esforços já desenvolvidos anteriormente,
encontra as técnicas convenientes para levar a cabo tais operações? Se
aceitarmos este ponto de vista, que não parece poder ser posto em causa,
verificamos, nos programas de história, a ausência de alguns conceitos e noções
básicos, entre os quais os que se referem, pura e simplesmente, ao conhecimento. Tudo se passa como se as
operações de descoberta e de conquista não assentassem num
conhecimento que foi sendo continuamente modificado sob a pressão de viagens e
de informações obtidas. A visão do mundo transforma-se sob a dupla pressão da
prática e das interrogações novas, inéditas, que a primeira permite ou exige». In
Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África
séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História,
2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT