sábado, 17 de novembro de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «A ausência de alguns conceitos e noções básicos, entre os quais os que se referem, pura e simplesmente, ao “conhecimento”. Tudo se passa como se as operações de descoberta e de conquista não assentassem num conhecimento que foi sendo modificado sob a pressão…»


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Artifícios da História. Alteridade e História
A abertura ao mundo e a prioridade portuguesa
«Não se pode considerar esta relação com o Outro como uma relação sobre-determinada a não ser por meio de um inventário dos sistemas de valores portugueses, dependentes de uma visão do mundo naturalmente restrita e não podendo senão surpreender-se com a pujança das culturas outras. Nestas condições, como se podia esperar que o encontro com o Outro decorresse sem acidentes,  sem violências, sem mortes, de ambos os lados? Porque o etnocentrismo dos europeus chocou com o etnocentrismo de árabes, de bérberes, de africanos.
Parecem, por isso, perigosamente simplificadas as diferentes propostas de leitura que assentam num implícito: os europeus e sobretudo os portugueses e os castelhanos são superiores aos outros povos e estão por isso autorizados a agir para os integrar nos espaços europeus. Como se pode entender a noção de abertura ao mundo? Será que anteriormente ao esforço português não existia essa abertura e que a Europa esperou que portugueses e castelhanos, mais os primeiros do que os segundos, abrissem as portas do conhecimento?
É certo que, pelo menos desde o século XIX, se tem multiplicado entre nós uma organização da história que vai neste sentido, esquecendo não poucas vezes a acção fecundadora dos europeus. Certos historiadores, como Jaime Cortesão, hiper-exaltam os valores portugueses, separando-os do quadro geral do conhecimento europeu, esquecendo até o sentido das referências feitas aos textos e aos conhecimentos europeus. Quem não sabe o peso do livro de Marco Pólo, trazido para Portugal pelo Infante Pedro, o das Sete Partidas, tão tristemente morto em Alfarrobeira? Quem não sabe que a nossa ciência cosmográfica recebeu um incentivo vigoroso dos sábios da comunidade judia? Estas formas de irrigação científica são necessárias e legítimas, mas elas traduzem uma lenta sedimentação dos conhecimentos importados. É neste sentido que a definição do campo científico da Europa dos séculos XIII a XVI é indispensável (e prioritária) ao estudo do processo dos Descobrimentos.
Os portugueses pertencem, pois, ao grupo europeu que assume a tarefa de assegurar a constante modernização do conhecimento, graças à qual vai ser possível passar das técnicas de navegação do Mediterrâneo e dos mares do Norte, às técnicas atlânticas.
O discurso imperial português não hesita em afirmar a hegemonia das práticas portuguesas. Cabe ao historiador de hoje distinguir o que pertence ao núcleo central do etnocentrismo daquilo que corresponde a uma contribuição modernizante, que exerceu uma influência definitiva nos planos europeus e mundial. A glosa do discurso português que se estrutura entre os séculos XV e XVI não pode substituir a necessidade do rigor histórico que implica a leitura do discurso europeu. Qual é a parte que nos cabe, sobretudo quando sabemos que não poucas vezes esquecemos de escrever o que mais importava à Europa?
De maneira subtil, mas patriótica, procurou Jaime Cortesão explicar o dificilmente explicável. Os responsáveis portugueses teriam adoptado uma política de sigilo, destinada a assegurar o controlo das operações realizadas alhures. Esta afirmação teórica esbarra com muitas e graves dificuldades, entre as quais a presença de muitos estrangeiros nestas operações de descobrimento e de conquista. Sem falar na maneira como o italiano Ramúsio pode obter manuscritos portugueses cujos originais se perderam e dos quais só existe nos dias de hoje a tradução italiana.
Esta situação coloca-nos perante uma enorme dificuldade: como justificar esta abertura ao mundo quando na verdade as operações culturais provêm do Mediterrâneo, onde os diferentes grupos humanos iam procedendo à acumulação de conhecimentos? Talvez não fosse impossível dizer que a pressão do conhecimento se desloca de leste para oeste, impondo modificações constantes das técnicas e das ideologias.
Será ainda hoje legítimo falar em prioridade portuguesa no processo da expansão europeia? Não seria mais legítimo sublinhar estarmos perante uma tarefa peninsular, que ao sistematizar os esforços já desenvolvidos anteriormente, encontra as técnicas convenientes para levar a cabo tais operações? Se aceitarmos este ponto de vista, que não parece poder ser posto em causa, verificamos, nos programas de história, a ausência de alguns conceitos e noções básicos, entre os quais os que se referem, pura e simplesmente, ao conhecimento. Tudo se passa como se as operações de descoberta e de conquista não assentassem num conhecimento que foi sendo continuamente modificado sob a pressão de viagens e de informações obtidas. A visão do mundo transforma-se sob a dupla pressão da prática e das interrogações novas, inéditas, que a primeira permite ou exige». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT