Dia do Desassossego
“Escrevo para desassossegar, não quero leitores conformados, passivos,
resignados”, disse José Saramago
pelos cantos do mundo e, pela última vez, na apresentação de “Caim”, para
muitos mais do que um romance, um grito para romper com a indiferença. Nunca a
sociedade precisou tanto de seres humanos desassossegados, capazes de mostrar
colectivamente a inquietação e, a partir dela, elaborar alternativas que nos
devolvam a racionalidade. O Dia do
Desassossego é uma chamada de atenção. Somos seres pensantes e queremos viver
enquanto tal. Não somos massa, nem um número, nem uma estatística, e muito
menos um rebanho dirigido. Somos homens e mulheres capazes das maiores proezas,
incluindo a de sorrir em tempos sombrios, porque decidimos que ninguém nos gela
o sangue nem nos corta a respiração. “Sábio
é o que se contenta com o espetáculo do mundo”, escreveu Ricardo Reis-Fernando Pessoa. E José Saramago mostrou-lhe esse
espectáculo no ano da sua morte porque sempre soube que contemplar é um passo
necessário, mas o segundo, tão urgente hoje como em 1936, é intervir, antes que
intervenham sobre nós. Como pessoas, como culturas, como países. Neste Dia do Desassossego, quando José Saramago faria 90 anos,
contemplemos o espectáculo do mundo pela sua mão. Caminhemos com “O Ano da Morte de Ricardo Reis” pelas
ruas de Lisboa e, em cada esquina descrita, paremos para pensar, de cabeça
levantada. Somos cidadãos desassossegados, gente que pensa e tem coração para
sentir a força da beleza, da bondade e dos argumentos. Saiamos à rua neste 16
de Novembro, desassossegados mas não vencidos, com as nossas capacidades
despertas, a nossa sensibilidade afinada, seres de palavras, de memória e de
gratidão. O desassossego será uma forma de romper todos os cercos. In A Fundação.
«Na história dos rios nunca acontecera um tal caso, estar passando a água
em seu eterno passar e de repente não passa mais, como torneira que bruscamente
tivesse sido fechada, por exemplo, alguém está a lavar as mãos numa bacia,
retira a válvula do fundo, fechou a torneira, a água escoa-se, desce, desaparece,
o que ainda ficou na concha esmaltada em pouco tempo se evaporará. Explicando
por palavras mais próprias, a água do Irati retirou-se como onda que da praia
reflui e se afasta, o leito do rio ficou à vista, pedras, lodo, limos, peixes
que saltando boquejam e morrem, o súbito silêncio.
Os engenheiros não estavam no local quando se deu o incrível facto, mas
aperceberam-se de que alguma coisa anormal acontecera, os mostradores, na bancada
de observação, indicaram que o rio deixara de alimentar a grande bacia aquática.
Num jipe foram três técnicos averiguar o intrigante sucesso, e, durante o
caminho, pela margem do embalse, examinaram as diversas hipóteses possíveis,
não lhes faltou tempo para isso em quase cinco quilómetros, e uma dessas hipóteses
era que um desabamento ou escorregamento de terras na montanha tivesse desviado
o curso do rio, outra que fosse obra dos franceses, perfídia gaulesa, apesar do
acordo bilateral sobre águas fluviais e seus aproveitamentos hidroeléctricos,
outra, ainda, e a mais radical de todas, que se tivesse exaurido o manancial, a
fonte, o olho-d’água, a eternidade que parecia ser e afinal não era. Neste
ponto dividiam-se as opiniões. Um dos engenheiros, homem sossegado, da espécie
contemplativa, e que apreciava a vida em Orbaiceta, temia que o mandassem
para longe, os outros esfregavam de contentamento as mãos, podia ser que
viessem a transferi-los para uma das barragens do Tajo, o mais perto de Madrid
e da Gran Vía. Debatendo estas ansiedades pessoais chegaram à ponta extrema do
embalse, onde era o desaguadouro, e o rio não estava lá, apenas um fio escasso
de água que ainda ressumbrava das terras moles, um gorgolejo lodoso que nem
para mover uma azenha de brincar teria força, Onde é que raio se meteu o rio,
isto disse o motorista do jipe, e não se poderia ser mais expressivo e
rigoroso. Perplexos, atónitos, desconcertados, inquietos também, os engenheiros
voltaram a discutir entre si as já explicadas hipóteses, posto o que,
verificada a inutilidade prática do prosseguimento do debate, regressaram aos
escritórios da barragem, depois seguiram para Orbaiceta, onde os
esperava a hierarquia, já informada do mágico desaparecimento do rio. Houve
discussões ácidas, incredulidades, chamadas telefónicas para Pamplona e Madrid,
e o resultado do fatigante trabalho e trato veio a exprimir-se numa ordem muito
simples, disposta em três partes sucessivas e complementares. Subam o curso do
rio, descubram o que aconteceu e não digam nada aos franceses.
A expedição partiu no dia seguinte, ainda antes do nascer do sol,
caminho da fronteira, sempre ao lado ou à vista do rio seco, e quando os
fatigados inspectores lá chegaram compreenderam que nunca mais tornaria a haver
Irati.
Por uma fenda que não teria mais de uns três metros de largura, as águas precipitavam-se
para o interior da terra, rugindo como um pequeno Niágara. Do outro lado já havia
um ajuntamento de franceses, fora sublime ingenuidade pensar que os vizinhos,
astutos e cartesianos, não dariam pelo fenómeno, mas ao menos mostravam-se tão
estupefactos e desorientados como os espanhóis deste lado, e todos irmãos na
ignorância. Chegaram as duas partes à fala, mas a conversa não foi extensa nem
profícua, pouco mais que as interjeições de um justificado espanto, um
hesitante aventar de hipóteses novas pelo lado dos espanhóis, enfim, uma
irritação geral que não encontrava contra quem se voltar, os franceses daí a
pouco já sorriam, afinal continuavam a ser donos do rio até, à fronteira, não precisariam
de reformar os mapas». In José Saramago, Jangada de Pedra, Editorial Caminho,
14ª Edição, ISBN 978-972-21-0289-6.
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