quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A Bela Poesia. Ramos Rosa. «Mas não o vinho límpido de um corpo. A lucidez da terra. E se respiro a boca não atinge a nudez una onde começo. Era com o sol. E era um corpo. Onde agora a mão se perde. E era o espaço. Onde não é»

jdact e cortesia de wikipedia

A Partir da Ausência
Imaginar a forma
doutro ser. Na língua,
proferir o seu desejo.
O toque inteiro.

Não existir.

Se o digo acendo os filamentos
desta nocturna lâmpada.
A pedra toco do silêncio densa.
Os veios de um sangue escuro.

Um muro vivo preso a mil raízes.

Mas não o vinho límpido
de um corpo.
A lucidez da terra.
E se respiro a boca não atinge
a nudez una
onde começo.

Era com o sol. E era
um corpo.

Onde agora a mão se perde.
E era o espaço.

Onde não é.

O que resta do corpo?
Uma matéria negra e fria?
Um hausto de desejo
retém ainda o calor de uma sílaba?

As palavras soçobram rente ao muro.
A terra sopra outros vocábulos nus.
Entre os ossos e as ervas,
uma outra mão ténue
refaz o rosto escuro
doutro poema


Para um Amigo Tenho Sempre
Para um amigo tenho sempre um relógio
esquecido em qualquer fundo de algibeira.
Mas esse relógio não marca o tempo inútil.
São restos de tabaco e de ternura rápida.
É um arco-íris de sombra, quente e trémulo.
É um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

Poemas de António Ramos Rosa,  
in ‘A Nuvem Sobre a Página’ e ‘Viagem Através de uma Nebulosa’


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