Artifícios da História.
Presenças angolanas nos documentos escritos portugueses
«A necessidade de proceder à recomposição da História de Angola, operação
que parece ser indispensável à própria estabilização da sociedade angolana de
hoje, é consequência de uma multiplicação de investigações e de estudos de
natureza histórica, produzidos nos últimos vinte anos por africanos, americanos
e europeus. Resulta também da consciência cada vez mais aguda da importância central
da pesquisa pluri e interdisciplinar, do recurso a todas as fontes e metodologias
aperfeiçoadas no campo das ciências sociais e da necessidade de desenvolver a
crítica, a reflexão e o confronto de ideias.
A construção da História, questão que, sobretudo nos últimos dois séculos,
gerou leituras, interpretações, escolas, correntes, polémicas apaixonadas,
suscita hoje uma vasta constelação de problemas que se situa no ponto de convergência
de duas reflexões fundamentais. A primeira ocupa-se da produção do saber
histórico, centrada em torno de uma abordagem simultaneamente conceptual e
cronológica, isto é, epistemológica e historiográfica. A segunda define-se como
uma reflexão consagrada ao ensino da História organizado em cursos, manuais de
ensino, respeitando instruções oficiais elaboradas a partir das próprias
experiências dos historiadores actuais. Por outras palavras:
- como se constrói a História, com que instrumentos conceptuais, com que documentos, seleccionados como? Como se ensina a História, a quem, quando, onde, com que objectivos?
A tarefa do historiador obriga-o a uma tensão permanente para respeitar
as exigências da verdade, tendo consciência de que a História que escreve ou ensina
é uma operação intelectual complexa, sujeita a revisões constantes, que tanto
dependem dos documentos como dos pontos de vista utilizados.
Fontes, conceitos e métodos privilegiados pelo historiador, factos
históricos, tempos da História: a História é uma construção do historiador,
dependente da fidelidade às fontes e do rigor das interpretações. A partir das
marcas do passado deixadas pelos homens, o historiador organiza o seu corpus
documental, selecciona os seus instrumentos conceptuais, constrói os factos e
inscreve-os em determinadas temporalidades. A realidade do passado não é um dado
que o historiador possa encontrar, reconstituir e transcrever. Semelhante
realidade não pode deixar de ser interrogada e organizada. O historiador faz as
suas escolhas e constrói a História.
A época em que os vestígios do passado utilizados pelo historiador eram
apenas os documentos escritos e arqueológicos deu lugar a um tempo actual em
que se verifica um alargamento do campo dos documentos. Há já várias décadas, Lucien Febvre escrevia que tudo o que o
homem toca, produz, diz, pensa, cria… Pode e deve ser considerado fonte
histórica. Todavia estas fontes que o historiador pode e deve utilizar sem
discriminações não são objectos naturais, com excepção talvez dos resíduos
paleontológicos descobertos pelos arqueólogos. O mesmo é dizer, que em História
não existem fontes em bruto. Testemunhos orais, memórias orais e escritas,
textos jurídicos, sermões, correspondências, relatos escritos e orais,
monumentos, produções plásticas, fotografias, instrumentos do trabalho dos
homens e objectos do quotidiano destinados aos mais variados usos, desde a
alimentação ao religioso, apareceram e foram utilizados para satisfazer
necessidades, práticas ou imaginárias, respondendo a intenções, a vontades, a
escolhas. Ou seja, as fontes construídas pelos homens do passado no quadro dos
seus sistemas culturais são identificadas, recuperadas e reconstruídas pelos
historiadores que as seleccionam, analisam, interrogam em função dos seus
objectivos, das suas hipóteses de trabalho, assim como do conhecimento que se
acumula e se exterioriza.
Os documentos escritos relativos a Angola não podem deixar de ser estudados e interrogados tendo em conta estas linhas gerais de reflexão, produzidos por autores na sua grande maioria exteriores às diferentes realidades angolanas, estes documentos não só são reveladores das condições em que foram elaborados, fornecendo o olhar exterior sobre os homens, os espaços, os sistemas de organização social criados pelos angolanos, mas constituem sobretudo um excelente observatório das formas como os historiadores os utilizaram, organizando os seus próprios corpus documentais para alcançar objectivos e responder a interrogações suscitadas por contextos ideológicos, mentais, sociais e políticos diversos». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, Centro de História da U. de Lisboa, ISBN 972-8801-31-9.
Cortesia de Caleidoscópio/JDACT