‘Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
nem o que é mal, nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...
É a Hora!
Fernando Pessoa, in ‘Mensagem’
O Reencontro
«Depois do cerco à vila de Cintra, os habitantes fizeram a entrega da
cidade a Afonso Henriques, juntamente com a guarnição, sem derramamento de
sangue. Agora, a viver no topo daquela serra que tinha a forma de uma bola,
como um coelho, altar de vários cultos, sentia que podia tocar no ar na terra e
no mar Ao conviver com tanta gente diferente, o seu coração sentia-se cheio!
Certo dia, numa manhã de neblina em que tudo parecia imerso num fino
véu de mistério, uma vontade súbita atravessou-o. Ao acordar dirigiu-se à janela
do seu quarto e viu dois pássaros chilreando num galho solto que se amontoava
junto à lenha no pátio; sorriu. Passou a cara e o pescoço por água e vestiu-se
rapidamente, saindo de rompante, quase tropeçando no banco em madeira que se
encontrava junto à cama. Era quase um homem feito. Tinha-se transformado num
belo e promissor jovem.
Sentindo-se sereno e em paz com o mundo, sentiu um forte apelo de sair
e cavalgar nesse dia. Desceu a encosta do castelo, passou pela gafaria e dirigiu-se ao castro
de Santa Eufémia, descendo pelo caminho da ermida de S. Lázaro.
Acalmou o passo, puxando as rédeas do cavalo e encostando os calcanhares ao
animal, deteve-se um pouco, reparando no movimento de pessoas do campo, logo
voltando a retomar o caminho, galopando em sua direcção. Os pregões anunciavam dia
de feira.
O cheiro húmido da bruma, agora maís dissipada, misturava-se com o aroma
das frutas, e distinguia-se na profusão de vozes que ressoavam do mercado, o
riso inocente dos catraios.
A sua presença junto do comendador da vila, bem como a sua maneira de
ser tinham-no tornado numa figura popular junto dos vicus (associação de vilões que tinham deveres civis e militares
para com o rei).
As pessoas eram as mesmas, as crianças de cara suja de terra brincavam
à volta dos cestos, as mais pequenas dormiam envoltas em cobertores. Olhou em
volta, mantendo-se em cima do cavalo enquanto acompanhava serenamente o seu
passo cadenciado e notou sim que havia uma coisa diferente, uma tenda árabe com
tecidos. Aproximou-se e reparou numa coberta semelhante a outra que vira sua
mãe bordar para acompanhar o seu pai nas campanhas. Eram cores diferentes, alegres.
Mais uma vez a sua curiosidade impeliu-o para a descoberta.
Um monge de branco (alguns monges de Cister foram o apoio espiritual
das cruzadas e dos templários) negociava tecidos. Reconheceu-o de imediato. -
Irmão Antunes Duval, por aqui? Também hoje descestes ao povoado? - Perguntou
Renato, com um sorriso, apoiando os pulsos na cela do cavalo. - Oh... jovem Renato...
bons olhos te vejam rapaz! Sabes, o frio assim me obriga. As esteiras de palha
não são suficientes e gostava de tapar as frinchas das portadas da janela. O meu
amigo Abel tem uns preços óptimos!
Mantendo-se em cima do seu cavalo, com os punhos sobre a cela e a
expressão curiosa, Renato aproximou-se de Abel, abordando-o com um certo ar de
familiaridade.
- Conheço-te? O teu olhar não me
é estranho! Parece-me que já nos cruzamos! - Jovem senhor, se bem me recordo,
numa noite de sábado entraste-me pela porta adentro. Não te lembras? Já foi há
uns tempos... Mas a minha gratidão para contigo é maior! - Respondeu-lhe Abel,
olhando-o directamente nos olhos, com uma simpática expressão de agradecimento.
- Para comigo? Gratidão? Como
assim? - inquiriu Renato, com espanto. - Senhor foi em Lixbuna. Salvaste-me das
mãos de um cruzado... não te lembras? Nessa mesma noite eu e a minha família
cumpríamos o preceito do Sábado. Nunca cheguei a ter uma oportunidade para te
agradecer... É curioso voltarmos a encontrar-nos! Olha, este é o meu tio Abraão,
que também estava comigo... Como te chamas tu?»
In Maria João Martins Pardal e Ezequiel Passos Marinho, A Comenda
Secreta, Ésquilo, Lisboa, 2005, ISBN 972-8605-58-7.
continua
Cortesia de Ésquilo/JDACT