«Lu Xun é mais do que um escritor moderno da antiquíssima China.
Moderno, embora já um clássico. Para contar a história da vida deste homem,
necessário se torna contar a história do conflito entre a China antiga e a
China moderna. É possível, nos seus textos, de algum modo reviver e compreender
uma nação e um povo profundamente divididos. A China, entre aproximadamente
1880 e 1950, foi atormentada por dramáticos e desastrosos eventos históricos que,
sem dúvida, teriam atrasado uma nação mais frágil. Foi um profundo abismo para
o povo e a sociedade chineses, divididos entre uma elite social altamente
sofisticada mas de um refinamento elegante totalmente estagnado e os movimentos
e espírito revolucionários de uma geração que pretendia, a todo o custo,
quebrar com as peias sufocantes que a cercavam e caminhar decididamente para uma
modernização.
Numa perspectiva superficial, a China experimentou problemas
semelhantes aos europeus, no período que medeia os dois últimos decénios do
século XIX e o início da II Guerra Mundial. Mas as diferenças eram grandes. O
velho sistema social e político na China estava, em quase todos os aspectos,
muito mais atrasado do que na Europa, assim como o corte com o antigo e o
concomitante passo revolucionário para uma idade nova foi ainda mais drástico
do que na Rússia. No meio destes conflitos e mudanças, o povo chinês teve que
sofrer imensamente.
Passeando por ruas movimentadas,
escondendo o rosto nas abas do meu chapéu, escreveu o ensaísta, poeta e
novelista chinês, Lu Xun, 1881-1936,
eu sinto-me
como um bêbedo em pé sobre uma
tábua esburacada boiando ao sabor de uma corrente furiosa. Lu Xun foi testemunha dos mais
desastrosos tempos da história moderna chinesa. Ele presenciou e viveu o fim da
China Imperial, sendo que o seu trabalho mais produtivo se verificou nos tempos
de confusão e anarquia que se seguiram à proclamação da República Chinesa, em 1911.
Escreveu muito sobre estes tempos, sobre uma China torturada pelos senhores da
guerra e pelas tropas dos invasores estrangeiros.
Sentiu ele a inabilidade e a paralisia dos intelectuais e dos políticos
da sua geração. E presenciou a miséria e o sofrimento dos milhões de
inapelavelmente pobres, não se permitindo sobre isso o silêncio. A sua
importância para as literaturas chinesa e mundial não é apenas a de um grande escritor,
mas sim, também, a de um intelectual política e socialmente activo.
Em termos literários, foi ele um modernizador do seu tempo, o único
escritor chinês de fama mundial após os tempos dinásticos. Um modernista que se
identificou com o Ocidente e um revolucionário que alterou o estilo da literatura
chinesa.
As suas raízes estão bem enterradas no seu tempo. Lu Xun nasceu a 25 de Setembro de 1881, em Shaoxing, a capital de
um dos distritos de Zhejiang, uma província da costa oriental chinesa. A cidade
fora o berço, durante muitos séculos, de chineses educados e influentes. Foi a
terra natal de muitos artistas e membros politicamente responsáveis da alta
sociedade. Não surpreende assim que a sua família ocupasse cargos altamente
posicionados, ao nível do poder e da administração locais.
Nasceu no seio dos Zhou,
tendo como cabeça de família o seu avô materno, titular de um lugar no governo
distrital. Era assim um Mandarim, um membro da aristocracia
não hereditária, burocratas de mérito próprio que governaram a China por quase
dois mil anos. Este legado de tradição feudal elegante fez de Lu
Xun um precoce homem de letras, alguém que crescera num mundo de poesia.
O seu nome completo de nascença era Zhou Shuren, o que signifìca: homem
vertical como uma árvore. O que os seus pais tinham em mente, quando lhe
deram este nome, pode apenas ser adivinhado. Mais tarde, ele próprio mudou de
nome, procedimento normal entre chineses da classe culta, e tomou o nome de
família da sua avó materna, Lu Rui. Viveu a sua inteira meninice
junto do avô, o cabeça do clã familiar, a quem ele dedicava um profundo afecto.
A primeira infância, em Shaoxing, foi segura e tranquila. Recebeu
instrução numa das muitas escolas citadinas privadas, como acontecia
frequentemente na China de então. Eram escolas ao velho estilo, onde um mestre
patriarcal ensinava os alunos a ler os livros canónicos chineses, os clássicos
de Confúcio, e os muitos escritos
escolásticos que divulgavam e interpretavam o Mestre. Foi também então iniciado na composição poética e na
elaboração de ensaios à maneira clássica. As ciências, no sentido ocidental do
termo, ainda não eram requeridas para a educação de um promissor jovem como Lu Xun. As meninas eram instruídas em
casa. Quando o eram». In Lu Xun, Ervas Silvestres, Série Oriental,
prefácio de Frank Landt, Edições Cotovia, Lisboa, 1997, ISBN 972-8028-96-2.
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