Mais tarde, se gostasse do que visse, podia casar-me com ela. Isto
seria o suficiente; eu não estava interessado em casar com a filha de um homem
rico, nem com uma mulher do tipo fina e educada. Além disso, fazer amizade com
uma rapariguinha e observar o seu desenvolvimento dia-a-dia, enquanto levávamos
uma vida alegre e divertida, parecia-me que teria um atractivo especial, muito
diferente do que seria montar casa conforme as regras. Resumindo, eu e Naomi
brincaríamos às casinhas, como crianças. Seria uma vida simples e descontraída,
e não essa existência enfadonha associada à manutenção de uma casa.
Era esse o meu desejo. Uma casa conforme as regras, no Japão
moderno, exige que:
- cada armário, braseira ou al mofada esteja no lugar que lhe é destinado;
- as tarefas do marido, da mulher e da criada são fastidiosamente distintas;
- é preciso satisfazer vizinhos e familiares difíceis de contentar.
Nada disso é agradável nem benéfico para um jovem empregado de
escritório, pois requer muito dinheiro e torna complicado e rígido aquilo que
devia ser simples. Tendo em conta esses aspectos, considerei o meu plano uma espécie
de inspiração. Falei do meu plano a Naomi pela primeira vez quando a
conhecia havia cerca de dois meses. Durante esse tempo tinha ido ao Café Diamante
sempre que estava desocupado e excogitara todas as oportunidades que pudera para
falar com ela. Naomi gostava muito de ver filmes, e nos dias da folga ia
comigo a um cinema no parque. Depois, entrávamos em qualquer lado para petiscar
comida ocidental ou talharim. Mesmo
nessas ocasiões, era raro ela dizer uma palavra; normalmente, tinha um ar tão
carrancudo que eu não conseguia perceber se estava contente ou aborrecida.
Porém, nunca disse que não, todas as vezes que a convidei. Está bem, claro,
respondia docilmente e seguia-me fosse para onde fosse.
Não sabia que espécie de pessoa ela julgava que eu era, nem por que
vinha comigo, mas supunha que ela era ainda uma criança que olhava os homens
sem desconfiança, e que os seus sentimentos eram simples e inocentes. A minha
convicção era que ela vinha comigo porque eu a levava aos espectáculos de que
ela gostava e a convidava para jantar. Pela minha parte, eu era uma ama-seca, um
tio amável e simpático; nunca me comportei de modo diferente, nem esperei mais
nada dela senão aquele tipo de relação. Quando os recordo agora, aqueles dias
fugazes, como de sonho, parecem um conto de fadas, e não posso deixar de
desejar que pudéssemos ser de novo o par ingénuo que fomos em tempos.
Consegues ver, Naomi? Quando não havia lugares para nos sentarmos,
ficávamos em pé ao fundo da sala de cinema. Não consigo ver nada,
respondia ela, esticando-se para se pôr em bicos de pés e tentando ver por
entre as cabeças das pessoas que estavam na frente. Assim, não consegues ver. Sobe
para este corrimão e segura-te ao meu ombro. Erguia-a e sentava-a num
corrimão alto. Balançando as pernas e com uma mão no meu ombro, parecia
satisfeita enquanto olhava atentamente para o filme.
Quando eu perguntava: Estás-te a divertir? Ela dizia
apenas: Sim. Nunca batia palmas nem saltava de alegria; mas eu percebia
quanto ela gostava dos filmes pela expressão do seu rosto enquanto olhava em
silêncio, com os olhos inteligentes arregalados como os de um cão alerta, à
escuta de um som distante.
Tens fome, Naomi? Por vezes, dizia: Não, não quero nada. Mas
a maior parte das vezes, quando tinha fome, dizia: Sim, sem a menor reserva.
Então, quando eu perguntava, ela dizia-me se queria comida ocidental ou talharim». In Junichirö Tanizaki, Naomi
(Chijin No Ai, 1924), Relógio D’Água, 2007, Lisboa, ISBN 978-972-708-943-7.
Cortesia de Relógio D’Água/JDACT