domingo, 16 de dezembro de 2012

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «Toda aquela gente ama a Rainha, pois nunca se esquece dos pobres. E, lembram os mais velhos, desde o remoto dia em que veio de Castela para casar com El-Rei, então ainda Infante, não cessou, até hoje, de porfiar pela paz do reino»


jdact e wikipedia

De profundis clamo ad te, domine
«Foi num dia como hoje, recorda o chanceler, fechando os olhos. Foi num dia como hoje, de sol e de vento. Um dia de sol e vento.
O vento faz rodopiar a poeira e a cinza que não muito antes foi madeira, tectos e portas de casebres incendiados pelos homens de guerra. O burgo já chorou e enterrou os seus mortos, depois rezou por eles. Agora recompõe-se, ainda a medo. Nos últimos dias começou a confiar, timidamente embora, nas tréguas, na protecção da hoste real, acampada a curta distância, nas constantes idas e vindas de mensageiros, mostrando que as duas partes mantêm as negociações. Neste momento, confia sobretudo na presença da Rainha, ontem chegada com as suas donas e os seus escudeiros, o seu confessor, o seu físico, a sua escolta de cavaleiros e peonagem. E, como reforçando este sinal tranquilizador, ao lado direito do carro cavalgava, armado e couraçado dos pés à cabeça, o arcebispo de Braga, que trazia consigo a sua mesnada.
Foram sinceras as bênçãos e as aclamações que choveram sobre os recém-chegados. Toda aquela gente ama a Rainha, pois nunca se esquece dos pobres. E, lembram os mais velhos, desde o remoto dia em que veio de Castela para casar com El-Rei, então ainda Infante, não cessou, até hoje, de porfiar pela paz do reino. Foi também ela que recolheu, em pranto, o último suspiro da muito venerada e santa D. Isabel, mãe de El-Rei nosso senhor. Por isso o velho burgo, apesar de ferido e enlutado pela guerra, tomou as galas que pôde para folgar com a vinda da Senhora Rainha. Mas isso aconteceu ontem. Agora, há um novo silêncio no ar, uma nova expectativa, como se toda a gente haja sustido a respiração.
Vinda do Sul, aproxima-se uma pequena hoste de cavaleiros armados, com as viseiras dos elmos abatidas. Antes mesmo de poder distinguir claramente a bandeira que trazem, o povo julga ter já reconhecido a armadura negra e o manto escarlate daquele que vem à frente. Nasce um murmúrio que cresce, que se espalha, passa de boca em boca, um incêndio discreto feito em parte de curiosidade, em parte de receio. - É o Infante. Bofé que é o Infante! Vem fazer a paz. É ele, é o Infante.
Isto dizem os murmúrios. Talvez, a Deus prouvera, respondem ou pensam os mais cautelosos. Ao menos, não vem em som de guerra nem traz consigo homens bastantes para acometer a gente de El-Rei. E pois quê, protestam outros, pois com a Rainha pousando no arraial havia ele de o acometer?
As conversas vão morrendo à medida que os cavaleiros se aproximam num silêncio apenas quebrado pelo chocar de metal contra metal, pelas patas e o resfolegar cansado dos cavalos. A hoste entra no burgo mas não se detém, é certo agora que se dirige para o acampamento do exército real.
Só se ouve, aqui e além, o sussurro que diz: é o Infante. O cavaleiro de negro e escarlate avança à frente dos seus, direito na sela, a cabeça imóvel, olhando em frente, o rosto coberto pelo elmo. Mas aquele que vai à sua direita levanta a viseira para limpar o suor da cara e há quem reconheça João Afonso Tello. Não cabem mais dúvidas, por força o homem a seu lado é o Infante.
Os garotos, os mais atrevidos, seguem em correria na peugada da coluna, logo chamados pelos gritos das mães, ah, Gil, ah Martim, ó Rui, aonde vais tu, perro, já para aqui. Sob o sol furioso de Agosto, a hoste prossegue, os cavalos ferem a terra com as patas e levantam mais poeira que começa logo a rodopiar.
É um dia de sol e de vento.
In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT