De profundis clamo ad te, domine
«Foi num dia como hoje, recorda o chanceler, fechando os olhos. Foi num
dia como hoje, de sol e de vento. Um dia de sol e vento.
O vento faz rodopiar a poeira e a cinza que não muito antes foi
madeira, tectos e portas de casebres incendiados pelos homens de guerra. O
burgo já chorou e enterrou os seus mortos, depois rezou por eles. Agora
recompõe-se, ainda a medo. Nos últimos dias começou a confiar, timidamente
embora, nas tréguas, na protecção da hoste real, acampada a curta distância,
nas constantes idas e vindas de mensageiros, mostrando que as duas partes
mantêm as negociações. Neste momento, confia sobretudo na presença da Rainha,
ontem chegada com as suas donas e os seus escudeiros, o seu confessor, o seu
físico, a sua escolta de cavaleiros e peonagem. E, como reforçando este sinal
tranquilizador, ao lado direito do carro cavalgava, armado e couraçado dos pés
à cabeça, o arcebispo de Braga, que trazia consigo a sua mesnada.
Foram sinceras as bênçãos e as aclamações que choveram sobre os
recém-chegados. Toda aquela gente ama a Rainha, pois nunca se esquece dos
pobres. E, lembram os mais velhos, desde o remoto dia em que veio de Castela
para casar com El-Rei, então ainda Infante, não cessou, até hoje, de porfiar
pela paz do reino. Foi também ela que recolheu, em pranto, o último suspiro da
muito venerada e santa D. Isabel, mãe de El-Rei nosso senhor. Por isso o velho
burgo, apesar de ferido e enlutado pela guerra, tomou as galas que pôde para
folgar com a vinda da Senhora Rainha. Mas isso aconteceu ontem. Agora, há um
novo silêncio no ar, uma nova expectativa, como se toda a gente haja sustido a
respiração.
Vinda do Sul, aproxima-se uma pequena hoste de cavaleiros armados, com
as viseiras dos elmos abatidas. Antes mesmo de poder distinguir claramente a bandeira
que trazem, o povo julga ter já reconhecido a armadura negra e o manto escarlate
daquele que vem à frente. Nasce um murmúrio que cresce, que se espalha, passa
de boca em boca, um incêndio discreto feito em parte de curiosidade, em parte
de receio. - É o Infante. Bofé que é o Infante! Vem fazer a paz. É ele, é o
Infante.
Isto dizem os murmúrios. Talvez, a Deus prouvera, respondem ou pensam
os mais cautelosos. Ao menos, não vem em som de guerra nem traz consigo homens
bastantes para acometer a gente de El-Rei. E pois quê, protestam outros, pois com a
Rainha pousando no arraial havia ele de o acometer?
As conversas vão morrendo à medida que os cavaleiros se aproximam num
silêncio apenas quebrado pelo chocar de metal contra metal, pelas patas e o
resfolegar cansado dos cavalos. A hoste entra no burgo mas não se detém, é
certo agora que se dirige para o acampamento do exército real.
Só se ouve, aqui e além, o sussurro que diz: é o Infante. O cavaleiro
de negro e escarlate avança à frente dos seus, direito na sela, a cabeça
imóvel, olhando em frente, o rosto coberto pelo elmo. Mas aquele que vai à sua
direita levanta a viseira para limpar o suor da cara e há quem reconheça João
Afonso Tello. Não cabem mais dúvidas, por força o homem a seu lado é o Infante.
Os garotos, os mais atrevidos, seguem em correria na peugada da coluna,
logo chamados pelos gritos das mães, ah, Gil, ah Martim, ó Rui, aonde vais tu,
perro, já para aqui. Sob o sol furioso de Agosto, a hoste prossegue, os
cavalos ferem a terra com as patas e levantam mais poeira que começa logo a rodopiar.
É um dia de sol e de vento.
In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997,
ISBN 972-41-1822-3.
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