jdact
«A arte Nambam, que através da sua leitura icónica distingue as
hierarquias e as funções pelo vestuário e pelo modo como se organiza o cortejo
da saída da nau dos navegadores portugueses que desembarcaram em Nagasáqui e
noutros portos japoneses. Mas este contacto foi feito pelo signo da
evangelização cristã, com o zelo apostólico dos jesuítas que esteve na origem
do corte de relações entre o shogum Hideioshi e o vice-rei das
Indias, convencendo-se este que Portugal, através dos religiosos, pretendia
conquistar o Japão.
Essa evangelização ficou retratada nas célebres placas em bronze com
imagens piedosas da vida cristã, e começaram a ser efectuadas aquando das
primeiras perseguições cristãs. Este encontro com o homem do Oriente está bem
ilustrado no célebre capítulo 223 da Peregrinaçao de Fernão
Mendes Pinto. Este e mais quatro portugueses foram convidados para
jantar, desde quecomessem à moda portuguesa, isto é, com as mãos:
- Pode bem imaginar-se a ironia sarcástica [...] daquele nobre daimio, de sua esposa, de sua filha, de todas as damas da corte, ao poisarem os olhares naqueles cinco bruüamontes, naqueles tremendíssimos alarves [...] atirados para ali sobre as esteiras, comendo com as mãos, como os macacos, os finos acepipes, que os japoneses levam à boca entre as pontas de duas varinhas de marfim.
Vejamos as palavras de Fernão Mendes Pinto, que nos
descreve este episódio:
- Despedindo então el-rei toda a gente que o acompanhara, ceou, recolhidocom sua mulher e seus filhos, e não quis que nenhum homem então o servisse, porque o banquete era à conta da rainha; porém ali nos mandou chamar todos cinco a casa de seu tesoureiro onde já estávamos aposentados, e nos rogou que por amor dele quiséssemos perante ele comer com a mão, assim como fazíamos em nossa terra, porque folgaria a rainha de nos ver. E mandando-nos logo preparar a mesa muito abastada de iguarias muito limpas e bem guisadas, e servida por mulheres muito formosas, entregámo-nos todos no que nos punham diante bem à nossa vontade; porém os ditos e galantarias que as damas nos diziam, e as zombarias que faziam de nós, quando nos viram comer com a mão, foram de muito mor gosto para el-rei e para a rainha que quantos autos lhe puderzm apresentar, porque, como toda a gente costuma comer com dois paus, como já por vezes tenho dito, tem por muito grande sujidade fazê,-lo com a mão, como nós costumamos. Então uma filha del-rei, moça já de catorz.e ou quinze anos e muito formosa, pediu licença a sua mãe para uma certa farsa que seis ou sete queriam fazer sobre a matéria de que se tratava [...]
No fundo, o encontro dos povos teve que esperar cinco séculos pela
evocação feita pelo africano Boubou Hama no seu livro Le Retard de l'Afrique (ed. Présence Africaine, 1972). Até aqui,
escreve ele, conheceram-se dois homens, isto é, o espiritual, o da Índia
antiga, materialista, o da civilização técnica ocidental. Será que as sabedorias
africanas podem realizar a síntese entre esta manipulação da matéria e esta
cultura do espírito? Na perspectiva africana, o universo inteiro está concebido
como um campo de forças, quer se trate das forças da natureza, dos antepassados
ou do proprio homem. Por exemplo, o laço que une o africano à sua terra é
qualquer coisa bem diferente do que concerne a um direito. Esta dependência tem
uma significação biológica e quase metafísica, ele identifica-se com esta
terra, faz parte dela como ela faz parte dele, em qualquer caso, pertencem ao
mesmo campo de forças.
Agora que o homem do Ocidente já não é dono do mundo, diante dele já
não tem indígenas mas sim interlocutores, é bom que se saiba estabelecer
o diálogo. Não basta descobrir e admirar arte negra, chinesa ou ameríndia; é
preciso redescobrir as fontes espirituais dessas artes em nós mesmos, é preciso
tomar consciência do que resta ainda de mítico na nossa existência, para se
fugir à provincialização». In António Luís Ferronha.
Breves considerações sobre o outro na cartografia portuguesa
A cartografia portuguesa dos séculos XV e XVI é normalmente apontada na
historiografia portuguesa como uma das mais notáveis consequências das grandes
viagens marítimas. É-o, decerto, não por ter revolucionado profundamente e
desde o início as técnicas de construção de cartas, como por vezes se tem
escrito com exagero, mas pela maneira como rapidamente transmitiu pela Europa a
verdadeira configuração de novas ilhas e de novas terras visitadas, ou seja, a
imagem do mundo acessível, que coincidía, aí por 1525, com quase toda a área do
nosso planeta.
Há na evolução dessa cartograÍia alguns aspectos pontuais menos
acertados, que mais ou menos rapidamente se corrigiram. Um exemplo:
- o planisfério dito de Cantino, desenhado em 1502, apresenta a península indochinesa erradamente alongada em latitude para o Hemisfério Sul, atingindo quase o trópico de Capricórnio;
- erro compreensível, porque essa península ainda não fora visiada por navegadores portugueses, e o planisfério representava aí notícias de segunda mão, mal compreendidas, talvez por dificuldades de língua, mas seguramente por desconhecimento da equivalência entre as isbas, medidas de arco usadas pelos árabes (traduzidas em português por polegadas) e as equivalentes medidas usadas no Ocidente (graus, minutos, segundos e, por esse tempo, também terceiros e por aí fora);
- apesar desse erro, a configuração do planisfério transmitiu-se a muitas outras cartas desenhadas posteriormente na Europa, como se vê na tábula moderna Indiae incluída na edição de 1513 da Geografia de Ptolomeu.
In Luís de Albuquerque, Breves considerações sobre o outro na
cartografia portuguesa, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações
Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.
Cortesia de Caminho/JDACT