A Formação da Sociedade de
al-Ândaluz
«Artobás e os seus
filhos mantiveram-se como cristãos mas tiveram que repartir largamente as suas
terras. Ao contrário, sua sobrinha Sara a Goda constitui o exemplo da introdução
das mulheres peninsulares na família agnatícia e poligâmica dos
conquistadores. Os grupos tribais ou clânicos
árabe-berberes, agnatícios e endogâmicos,
mantiveram-se pelo menos até aos começos da época califal enquanto as grandes
famílias peninsulares se esbatiam entre os séculos VIII e IX. A assimilação dos
hispanos à cultura árabe-berbere não ocorre apenas no campo religioso e
linguístico mas também no campo social e político.
Os grupos berberes
que entraram em Espanha na época da conquista eram originários do norte de
Marrocos e da Argélia ocidental e central mas alguns contingentes provinham das
grandes tribos nómadas de origem tripolitana como os Nafza
e os Hawwara.
Os escritores muçulmanos do século IX consideravam estas tribos tunisinas, na
sua estrutura social, antiga e profundamente arabizadas. Mas nesta sociedade
islâmica, aberta ao comércio mas dominada pelo poder tribal, grassava a
contradição cidade/tribo ou usando as palavras do poeta santareno Ibn Sara lavrava a antipatia
entre os beduínos e os habitantes das cidades. Nesta contradição, as
cidades levavam a melhor destribalizando a tal ponto a sociedade que, numa
carta ao califa Yusuf ibn Tasfin,
Almutamide
escreveu: “as nossas genealogias
alteraram-se… forma-mos povos e não tribos”.
As invasões almorávidas
e almóadas trouxeram novo alento aos clãs em território peninsular. Mas
enquanto no Magrebe, viviam no deserto ou nas montanhas mesmo à porta de casa,
para chegarem ao Andaluz, as tribos tinham de atravessar o mar. A partir do
século X, quando Abederramão III estendeu o seu domínio ao norte de Marrocos,
incrementou-se a ligação entre o Andaluz e o Magrebe. Nos séculos XI e
XII, as dinastias africanas dos almorávidas e dos almóadas firmaram as ligações
entre as duas margens. Médicos, literatos, filósofos andaluzes caminham para a
corte dos califas em Marraquexe. Nos arredores, em Agmat, morreu cativo o rei poeta Almutamide e mais tarde a
tríade dos grandes filósofos do Andaluz, Avempace, Ibn
Tufayl e Averróis. Mas este último, na sua Exposição da “República” de Platão lembra
que nos diferentes povos há indivíduos mais aptos para o saber do que outros. E
os povos com mais provas dadas eram os gregos e, nos países islâmicos, primeiramente
o Andaluz, e também a Síria, o Iraque e o Egipto, esquecendo-se de sugerir o
Magrebe.
As ligações entre as
duas margens levavam também a situações que se expressam no poema do eborense Isa
ibn al-Wakil:
Um exilado na terra do
Magrebe
Tem o coração dividido
Entre duas afeições:
Salé tomou uma parte
Évora a outra.
Vejamos um pouco mais de
perto o ritmo de islamização no Andaluz.
O episódio já citado da luta entre cáicidas
e cálbidas, o surto dos muladis que desde a primeira hora
se integraram como clientes nos poderes tribais e a revolta do arrabalde de
Córdova sugerem que a religião dos vencedores ganhara adeptos, desde os
primeiros anos, não só em Córdova como nos habitantes das outras cidades.
Ibn Mozain afirma que, no
ocidente, com excepção de Santarém e Coimbra, as terras foram
conquistadas à viva força e distribuídas entre os soldados, depois de deduzido
o quinto para o tesouro pio. No sul de Portugal, logo no primeiro meio século,
começa a processar-se a arabização e islamização do território, levada a cabo
pelos árabes iemenitas Yahsubi que, sob a direcção do chefe de clã Abu I-Sabbah
al-Yahsubi, se estabeleceram em Beja e no Algarve.
Richard W. Bulliet, baseado numa análise estatística dos nomes
dos juristas islâmicos compilados nos dicionários biográficos, considera que a
taxa de conversão no Andaluz não se afasta muito das curvas de conversão em
países orientais como o Iraque, o Irão, a Síria e o Egipto. A princípio, as
conversões seriam em pequena escala mas à medida que alguns abraçavam o Islão,
aumentava a probabilidade de que outros o fizessem. Nos finais do século IX,
as conversões andariam por cerca de 1/4 da população hispano-romana. Em 912 ainda
a população cristã seria maioritária mas os hispanos já islamizados, sem contar
os árabes e berberes, andariam por 2,8 milhões. A partir do século X, inicia-se
um período explosivo que leva à conversão da maioria dos hispanos. Por volta do
ano 1100, 80% da população do Andaluz seria islâmica, cabendo os outros 20% às
minorias cristã e judaica». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das
Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999,
IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.
continua
Cortesia de Instituto Camões/JDACT