Prato, Itália
jdact e cortesia de wikipedia
Os cavalos
O mundo de Guermantes
«O Sol escondia-se. Havia já muitos meses que eu não via o pôr-do-sol. Depois
do longo Verão do Norte, depois desse dia ininterrupto, infindável, sem
auroras, sem poentes, o céu começava enfim a enlanguescer por sobre os bosques,
o mar, os telhados da cidade. Qualquer coisa como uma sombra, e talvez
simplesmente o reflexo de uma sombra, a sombra de uma sombra, se condensava a
oriente. A noite nascia pouco a pouco, meiga e delicada, e o céu, a ocidente,
incendiava-se sobre as florestas e os lagos, encarquilhando-se ao fogo do
poente como uma folha de carvalho ao cansado fogo do Outono.
No meio das árvores do parque, sobre o fundo desta pálida e subtil
paisagem nórdica, as cópias do Pensador, de Rodin, e da Vitória de Samotrácia, esculpidas
num mármore muito branco, evocavam de uma maneira inesperada e peremptória o
gosto parisiense de um fim de século decadente e parnasiano que tomava, em Waldemarsudden,
uma atitude arbitrária e capciosa. Na vasta sala onde nos encontrávamos, com a
fronte apoiada aos vidros das grandes janelas, a sala onde o príncipe Eugénio
estuda e trabalha, um eco sobrevivia também, enfraquecido, fora de moda, do
esteticismo parisiense do ano de 1888, aproximadamente, época em que o príncipe
Eugénio tinha um atelier em Paris, morava na Rua Monceau, com o nome de
Oscarson, e em que era aluno de Puvis de Chavannes e de Bonnat. Algumas
telas da juventude encontravam-se suspensas nas paredes:
- paisagens da Ile-de-France, do Sena, do vale de Chevreuse, da Normandia, retratos de modelos com os cabelos esparsos pelos ombros nus, à mistura com quadros de Zorn e de Josephson.
Ramos de carvalho de folhas vermelhas raiadas de ouro saíam de ânforas
de porcelana de Marieberg e de vasos de Rorstrand, pintados por Isaac Grunevald
no estilo de Matisse. Uma grande chaminé de cerâmica branca, de frontão ornado
com um relevo com duas flechas cruzadas, encimadas por uma coroa nobiliárquica
fechada, ocupava um dos cantos da sala. Num vaso de cristal de Orefors
florescia uma magnífica mimosa trazida pelo príncipe Eugénio de um jardim do
Sul da França. Cerrei os olhos por um momento: era realmente o perfume da
Provença, de Avignon, de Nimes, de Arles que eu respirava: o perfume do
Mediterrâneo, da Itália, de Capri.
-Eu também gostaria-de viver em
Capri, como Axe1 Munthe, disse o príncipe Eugénio. - Parece que ele vive rodeado
de flores e de-pássaros. Pergunto-me às vezes, acrescentou sorrindo, - se ele
ama verdadeiramente as flores e os pássaros. -As flores amam-no muito - respondo
eu. - E os pássaros também o amam? - Tomam-no por uma velha árvore - volto eu a
responder, por uma árvore ressequida.
- O príncipe Eugénio sorria com
os olhos semicerrados. Como todos os anos sucedia, Axel Munthe passara o
Verão no Castelo de Drottningholm, onde era hóspede do rei, e partira para
a Itália havia poucos dias. Eu lamentava não o ter encontrado em Estocolmo. Em
Capri, cinco ou seis meses antes, nas vésperas da minha partida para a Finlândia,
subi à Torre de Materita para saudar Axel Munthe, que devia
dar-me algumas cartas para Sven Heddin,
Ernst Manker e outros amigos de Estocolmo. Axel Munthe esperava-me
sob os seus pinheiros e os seus ciprestes de Materita: de pé,
direito, lenhoso, rebarbativo, o dorso coberto pelo seu velho casacão verde, um
mau chapéu posto de lado sobre os cabelos despenteados, os olhos vivos, maliciosos,
escondidos pelos óculos pretos que lhe davam um pouco desse ar misterioso e ameaçador
que têm os cegos.
Munthe segurava pela trela um cão-lobo e, ainda que o cão parecesse manso,
logo que me apercebeu no meio das -árvores pôs-se a gritar que me não aproximasse.
- Vá-se embora! - gritava ele com grandes gestos de mão e exortando o cão a não
se atirar a mirn, a não me despedaçar, como se fizesse um grande esforço para o
reter, como se já não pudesse mais resistir aos furiosos sacões que dava à
trela esta besta-fera. Esta olhava-me, pacífica e alegre, dando ao rabo,
enquanto eu avançava lentamente, simulando medo, muito satisfeito por me
prestar a esta inocente comédia. Axel Munthe, quando está de bom humor,
diverte-se a improvisar pequenas cenas picarescas para troçar dos seus amigos».
In
Curzio Malaparte, Kaputt, Edição Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, Lisboa.
Cortesia E. Livros do Brasil/JDACT