Vontade natural
«Como podem estas atitudes e intenções, que normalmente associamos à
mente humana consciente e que intuímos serem o resultado do funcionamento do
grande cérebro humano, estar presentes a um nível tão básico? Mas o facto é que
estão, seja qual for o nome que queiramos atribuir a essas características do
comportamento da célula. Privada de conhecimento consciente, privada de acesso
aos dispositivos de deliberação bizantinos presentes no nosso cérebro, a célula
isolada revela uma atitude: quer viver por inteiro o tempo que lhe foi
geneticamente atribuído. Por estranho que pareça, torna-se óbvio que esse
querer, e tudo o que é necessário para o implementar, precedem o conhecimento
explícito e a deliberação quanto às condições de vida, uma vez que a célula
claramente não os possui. O núcleo e o citoplasma interagem e levam a cabo
cálculos complexos destinados a manter a célula viva. Lidam com os problemas
que a cada instante surgem a um ser vivo e adaptam a célula à situação, de
forma a sobreviver. Reorganizam a posição e a distribuição das moléculas no seu
interior, dependendo das condições ambientais, e alteram a forma dos subcomponentes,
tais como os microtúbulos, numa exibição de precisão espantosa. Reagem a
condições negativas e também às condições favoráveis. Como é óbvio, os componentes
que levam a cabo essas adaptações foram colocados na sua posição pelo material
genético da célula, de quem recebem ordens.
É comum considerarmos erradamente o nosso grande cérebro e a nossa
mente consciente como os promotores das atitudes, intenções e estratégias por
trás da nossa sofisticada gestão de vida. E porque não haveria de ser assim?
Trata-se de uma forma razoável e parcimoniosa de conceber a história de tal
progresso quando a observamos do topo da pirâmide e nas nossas circunstâncias presentes.
Contudo, a verdade é que a mente consciente se limitou a tornar o conhecimento
da gestão básica da vida conhecível.
As contribuições decisivas da mente consciente para a evolução vêm a
ser introduzidas a um nível muito superior. Têm a ver com tomadas de decisão
deliberativas e com criações culturais. Não estou, de todo, a menosprezar a
importância desse nível elevado de gestão da vida. Com efeito, uma das
principais ideias defende que a mente consciente humana deu um novo rumo à
evolução precisamente por nos dotar de opções, por tornar possível uma regulação
sociocultural relativamente flexível, bem para além da organização social
complexa que os insectos, por exemplo, exibem de forma tão espectacular. Estou,
isso sim, a inverter a sequência narrativa do relato tradicional sobre a consciência,
fazendo com que o conhecimento oculto da gestão da vida preceda a experiência
consciente de tal conhecimento. Estou igualmente a dizer que esse conhecimento
oculto é bastante sofisticado e não deve ser tomado como primitivo. A sua
complexidade é enorme e a inteligência nele implícita espantosa.
Não estou a menosprezar a consciência, mas estou, garantidamente, a acentuar a importância da gestão não-consciente da vida e a sugerir que ela constitui o esquema-base para as atitudes e intenções das mentes conscientes. Será que o nosso desejo consciente de viver, tão humano, a nossa vontade de prevalecer, teve início numa agregação silenciosa dos desejos rudimentares de todas as células do nosso corpo, uma voz colectiva libertada num canto de afirmação?» In António Damásio, O Livro da Consciência, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2010, ISBN 978-989-644-120-3.
Cortesia de Temas e Debates/JDACT