sábado, 29 de dezembro de 2012

A Revolução de 1383. Tentativa de caracterização. António Borges Coelho. «… na mui nobre Cidade de Lisboa, nós Dom Fernando, pela graça de Deus, rei de Portugal e do Algarve, considerando como o estado real que temos, por Deus nos é dado para reger os ditos Reinos e manter os nossos povos em direito e justiça e bons costumes…»

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Divergência e Diálogo
«Estas divergências tornaram-se mais claras após a publicação do XI volume de A Evolução Económica de Portugal, já citada. Para Armando Castro, a burguesia portuguesa trecentista, embora um gigante, manteve um respeito integral pelas estruturas da sociedade feudal. Noutro passo:
  • as massas populares não se ergueram movidas pelo objectivo de suprimir as estruturas feudais de alto a baixo.
E ainda:
  • Não podia haver, mesmo sectorialmente, consciência da possibilidade de construir uma sociedade assente noutros parâmetros de existência colectiva.
Insiste:
  • Não tendo posto como finalidade do sacrifício do seu sangue o esmagamento das estruturas feudais e a criação de uma sociedade utopicamente igualitária que não podiam compreender, nem pelejaram certamente para pôr no lugar dos senhores outra classe dominante, classe que então só poderia ser a burguesia.
Ora a burguesia não inscrevia a destruição das relações feudais no seu
programa. Finalmente, ao salientar que a revolução de 1383 resultou de uma aliança política de todas as forças anti-senhoriais, escreve que essa aliança assentava num compromisso com as estruturas básicas da sociedade feudal que todas as classes e grupos sociais tinham de aceitar e de facto aceitaram espontânea e inconscientemente, pois outro comportamento era impossível historicamente.
A inflexibilidade das malhas feudais e o apoucar do mundo protocapitalista revelam-se noutras afirmações:
  • a esmagadora maioria dos habitantes do país eram malados, colonos da Coroa, da fidalguia, dos organismos eclesiásticos;
  • a sociedade não tinha ao seu alcance processos de acumulação capitalista;
  • as estruturas senhoriais feudais cobriam todo o país não existindo zonas segregadas delas, embora diferenças de região.
Sobre os objectivos dos miúdos, da arraia-miúda na revolução, de uma coisa podemos estar seguros: não se levantaram, não puseram a vida e os bens no cepo para que as coisas ficassem na mesma, mesmo que presos de pura ilusão; e muito menos somente para descarregar a sua cólera. Tanto mais que o levantamento não foi espontâneo: fora provocado em Lisboa e foi longo o rastilho antes de a revolução rebentar nas outras cidades e vilas. Evidentemente, na bandeira que ergueram não podemos ler Morte às estruturas feudais. Tal terminologia e o nosso complexo conceito não iluminavam abertamente as mentes de antanho, mas tal não impediu que golpeassem de preferência os representantes do poder senhorial e tivessem ferido fortemente o que hoje designamos como estruturas feudais. A revolução não podia criar do nada novas estruturas. Favoreceu, sim, o desenvolvimento de estruturas já existentes. Aproximemo-nos da realidade da sociedade portuguesa de Trezentos. Portugal constituía um senhorio do rei, a quem os outros senhorios e concelhos deviam menagem, e surgia simultaneamente como os regnos a quem o rei confirmava os vossos foros e bons usos e costumes e aos senhores particulares a posse dos respectivos senhorios. Os senhorios eram representados individualmente pelo senhor. Os concelhos eram assumidos colectivamente, em Cortes, pelos procuradores e seus tabeliães e, na vida diária, pelos juízes e vereadores.
  • Dom Afonso, pela graça de Deus, rei de Portugal e do Algarve, a quantos esta carta virem faço saber que eu fazendo cortes em Évora, sendo aí juntados Ricos-homens e Cavaleiros e outros filhos d’algo dos meus Reinos outrossim bispos, abades, priores e outras pessoas dos mosteiros e igrejas do arcebispado de Braga e do bispado do Porto e dos outros bispados dos meus senhorios, e concelhos dos meus Reinos por seus procuradores, e outras gentes do meu senhorio para me receberem por Rei e por Senhor e me fazerem menagem e me conhecerem senhorio e dívido natural e a senhor a que são teudos de conhecer [...].
E nas Cortes de Lisboa de Agosto de 1371; Em nome de Deus, ámen. Era de mil e quatrocentos e nove anos na mui nobre Cidade de Lisboa, nós Dom Fernando, pela graça de Deus, rei de Portugal e do Algarve, considerando como o estado real que temos, por Deus nos é dado para reger os ditos Reinos e manter os nossos povos em direito e justiça e bons costumes, o que a cada um Rei cabe de fazer, por dar a Deus conta qual deve do estado de Reinar que nos por ele foi dado, e por viverem regradamente os nossos naturais. Porém, com a ajuda de Deus, por o encargo do Regimento que dos ditos reinos temos, e desejando que, com serviço de Deus e nosso, o bom regimento desses reinos e povos seja melhorado e acrescentado, e que cada um viva seguro e regrado honestamente, como deve com direito e justiça; para isto fazemos nossas cortes na sobredita cidade, nas quais foram juntos os infantes nossos irmãos e bispos e abades e prelados e condes e priores e mestres das ordens das cavalarias e Ricos-homens e filhos d’algo e outrossim muitos e mui bons cidadãos das cidades e vilas do nosso senhorio.
E nas Cortes do Porto de Julho de 1372:
  • […] fazemos nossas Cortes na cidade do Porto às quais mandamos vir dous homens bons de cada ums cidades e vilas dos nossos regnos para havermos conselho [...].
A organização social nos coutos, honras e nos julgados do século XIV era no geral idêntica à que se processava nas principais cidades e vilas?» In António Borges Coelho, A Revolução de 1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.

continua
Cortesia da Caminho/JDACT