«A liberdade que há naqueles montados é em tudo superior ao
ordenamento que os próprios homens põem nas coisas. Vejo na solidão da natureza
um respeito que me surpreende e prezo por isso a sua convivência. Afonso tinha
a mão esquerda assente no joelho. O passado nunca é, na sua aparência, como o
futuro, ainda que, no seu núcleo interno, eles nem sequer se diferenciem como
momentos distintos. Deus é o homem dum outro Deus maior. Acreditava conhecer a
idade do filho, que tinha nascido num período conturbado da sua vida.
Recordava-se desse tempo e da pouca fé que tinha tido do seu nascimento.
Anteriormente tinha já tido dois varões que tinham durado apenas escassos
meses. A liberdade do seu filho era por isso a liberdade dum filho segundo
que ascendia, porém, à sucessão do reino. Aceitando o silêncio como um
sinal submisso, o rei fechou a porta: - Não respondas, Pedro. Dá-me apenas o
que te peço, porque é o rei que to pede como pai.
Realizou-se o casamento do infante com D. Constança Manuel
por procuração. Foram os procuradores de Portuga1 a Cuenca e vieram os de João
Manuel á Évora. Acto jurídico por excelência, o casamento era assim um acto de
confiança entre dois Estados ou entre duas casas. Os festejos foram concorridos,
provaram-se vinhos e celebrou-se missa pontifical na diocese de Cuenca, onde D.
Constança foi autorizada a ir. Cuenca fazia fronteira entre o reino de Castela
e o reino de Aragão e distava pouco de Valência João Manuel possuía nessa diocese
amplas propriedades, que se estendiam até Albarracim, e escolheu-a talvez para
mostrar que entre Aragão e Castela existia um-terceiro espaço, neutro, de que
ele era o senhor. Entre Aragão e Castela ele próprio dispunha de terceiras
forças importantes, que podiam mesmo ser essenciais, tudo dependendo das
alianças, quer a um lado, quer a outro.
Estava previsto que D. Constança Manuel regressasse depois
do casamento não a Touro, onde o rei a tinha retido, mas a Penafiel, onde se
prepararia para partir para Portugal. Partiu com a comitiva do pai em finais de
Fevereiro, de Cuenca, e não evitou passar em Valadolid, onde estava a corte de
Castela. O esplendor dos festejos tinha já ecoado como um desagravo explícito
de João Manuel, que assim esperava redimir o fracassado casamento anterior da
filha.
O prato não produz o menor murmúrio. É preciso esperar pelas
festas, as ostensivas festas, para que alguém se digne olhar para nós. Foi
talvez isto, e não qualquer ciúme, que motivou a apreensão de D. Constança
Manuel em Valadolid, apesar dos violentos protestos do pai. Incapaz de se bater
com o rei, ele procurou imediatamente refúgio junto do rei de Aragão, Pedro IV,
que acabava de assumir, com dezasseis anos, a coroa, por morte de seu pai,
Afonso IV. Afonso, que morreu de hidropesia aos trinta e poucos anos, deixava
dois filhos de um segundo casamento com Leonor de Castela, irmã de Afonso XI, que
eram deste modo rivais do herdeiro. Leonor de Castela, talvez devido às
dissensões com o enteado, e pressentindo a morte de Afonso de Aragão, procurou,
nos finais de 1335, refugio junto do seu irmão, o rei de Castela. Não se
enganou, pois logo em Janeiro, dois ou três dias depois da morte de seu pai, que
ocorreu no palácio de Barcelona, Pedro se apressou a ordenar as primeiras
disposições contra os bens de Leonor de Castela. Estavam pois dispostas no
tabuleiro da Península as peças que iriam doravante, durante um largo período,
comandar a política externa dos três estados cristãos peninsulares. Dum lado,
os reis de Portugal e Castela, e do outro o rei de Castela. João Manuel, aliado
preferencial tanto do rei catalão como do rei português, era uma espécie de
castelo avançado destes mesmos reinos.
As verdadeiras discórdias entre Portugal e Castela só começaram depois
da morte de Isabel de Aragão em 4 de Julho de 1336. Tinha sessenta e seis anos e
morreu em Estremoz depois de ter deixado Coimbra no mês de Junho. Nasceu-lhe
um fleimão no braço esquerdo, que
cresceu desmedidamente e lhe foi chupando, dia a dia, as poucas forças. Não se
podia levantar e vinham todas as manhãs abrir-lhe a janela da câmara para entrar
o fresco. Um dia, quando D. Brites lhe veio lavar o corpo e pentear o cabelo,
encontrou-a a falar sozinha, desconjuntadamente sentada na cama. Gesticulava
com os braços no ar e fitava fixamente os zambujeiros dos campos, que lhe
ficavam em frente. Brites, que trazia toalhas húmidas para lhe refrescar o corpo
e serenar a fronte, perguntou-lhe o que se passava. Ela respondeu: - Filha,
atentai nessa Dona que aí vai. Brites como não viesse ninguém disse-lhe: - Que
Dona é, senhora? - Essa que está no parapeito da janela como se estivesse num
altar e que se veste das mais finas sedas brancas. As suas vestiduras esvoaçam
brandamente, mais frescas do que a água, no lume». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro,
Publicações Europa-América, 1990.
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