segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Outras Maneiras de Ver. Temas Portugueses. José Hermano Saraiva. «Em 1423 sabemos que acumulava o cargo de guarda-mor com um outro; “o de escrivão da puridade do infante Fernando”. Era um lugar de confiança, que exercia ainda em 1437. Em 1428 exerce, além das duas anteriores, mais uma função, “notário público do dito senhor rei (João I) em todo o seu senhorio”»


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A Revolução de Fernão Lopes
«Com a expressão a revolução de Fernão Lopes pretendo colocar este problema: a revolução descrita na Crónica de D. João I – 1ªparte é a que se verificou no último quartel do século XIV, mais ou menos pela época em que o escritor nasceu, ou é também, reflexamente, o conjunto dos acontecimentos políticos verificado nos meados do seculo XV, época em que o escritor pensou e escreveu o seu livro, ou é, finalmente, uma concepção em grande parte pessoal do escritor, que julga o passado que descreve à luz do presente que vive?
A primeira condição para podermos saber até que ponto a vida e a experiência do autor se projectam na sua obra seria o conhecimento pormenorizado dessa vida. E o que a tal respeito sabemos não é muito. Ignora-se, designadamente, quando e onde nasceu, de que meio social provinha, o que fez em jovem, quando e onde morreu. O que se pode dar por seguro, ou pelo menos muito provável, é o seguinte:
  • Nasceu entre 1380 e 1390. Os motivos que há para o pensar são que em 1437 tinha um filho formado em medicina que estava ao serviço do infante Fernando. Ora os estudos médicos eram então demorados, e dificilmente se pode admitir que o rapaz tivesse menos de trinta anos naquela data. Se foi o primeiro filho, é o único de que há notícia, e se nasceu de um primeiro casamento, teríamos o casamento por volta de 1407, e o nascimento do escritor uns vinte a vinte cinco anos mais cedo. Muito antes não poderia ter sido, visto que em l459 ainda vivia. Este cálculo situaria o nascimento entre 1387 e 1382. É realmente à volta disso que andam as estimativas dos biógrafos.
Em 1418 é pela primeira vez mencionado como guarda das escrituras da Torre do Tombo. Era um cargo muito mais importante do que hoje nos poderia parecer. Não existiam conservatórias prediais nem do registo civil e a fonte de muitos direitos estava em títulos individuais, de que o único exemplar que fazia fé era o que se guardava no arquivo do Estado. Era pois o guarda das escrituras quem conservava, buscava e mandava certificar as fontes do direito de cada um.
O facto de atingir essa função relativamente novo (trinta e poucos anos) revela que já então devia ter longa carreira de funcionário, ou gozar de protecção valiosa. De facto, sabe-se que anteriormente tinha sido escrivão dos livros do rei, isto é, amanuense nas secretarias regias. Em 1423 sabemos que acumulava o cargo de guarda-mor com um outro: o de escrivão da puridade do infante Fernando. Era um lugar de confiança, que exercia ainda em 1437. Em 1428 exerce, além das duas anteriores, mais uma função:
  • notário público do dito senhor rei (João I) em todo o seu senhorio.
Nessa qualidade assistiu em Estremoz ao acto pelo qual João I passou procuração ao infante Duarte com poderes gerais e especiais para tratar das negociações relativas ao dote do casamento dele Duarte com D. Leonor de Aragão. Assistiu ao acto, mas não foi ele quem executou materialmente o instrumento, fê-lo escrever por Pedr’Eanes, seu fiel escrivão. Era certamente o rei quem escolhia o notário para os seus próprios actos, havia vários tabeliães-gerais, e isto sugere que Fernão Lopes seria homem da confiança pessoal do monarca.
Depois de João I morrer (14 de Agosto de 1433) foi nomeado cronista. Mais exactamente: recebeu encargo de pô, em crónica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram, Isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes virtudes el-rei meu senhor e padre cuja alma Deus haja. O alvará de nomeação tem a data de 19 de Março de 1434, e já se afirmou que antes dessa época já exercia a função, pois a forma usada (temos dado carrego) parece referida ao passado. Mas suponho que o facto de nesse mesmo documento se mandar abonar o vencimento respectivo a partir de 1 de Janeiro daquele ano é suficiente para mostrar que a nomeação é realmente dessa altura.
Mas tudo indica que, muito antes de 1434, já Fernão Lopes seria, além de burocrata, historiador. É um problema muito discutido o de saber se são, ou não, de sua autoria as cronicas dos Reis de Portugal que chegaram ate nós em duas cópias, conhecidas por Crónica dos Cinco Reis e Crónica dos Sete Reis, e encontradas pelos eruditos Magalhães Basto e Silva Tarouca respectivamente na Biblioteca Municipal do Porto e nos arquivos da Casa do Cadaval. Mas tudo indica que sim, e que essa crónica representa a parte até há pouco considerada perdida da obra de Fernão Lopes.
No manuscrito do Porto indica-se a data em que a redacção foi iniciada: 1 de Julho de 1419, passado portanto cerca de um ano sobre a data em que Fernão Lopes foi nomeado guarda das escrituras do arquivo, entre essas escrituras estavam muitos dos elementos que serviram de fontes às crónicas». In José Hermano Saraiva, Outras Maneiras de Ver, Temas Portugueses, Círculo de Leitores, 1981.

Cortesia de C. Leitores/JDACT