A Revolução de Fernão Lopes
«Com a expressão a revolução de Fernão Lopes pretendo colocar
este problema: a revolução descrita na Crónica de D. João I – 1ªparte é a
que se verificou no último quartel do século XIV, mais ou menos pela época em
que o escritor nasceu, ou é também, reflexamente, o conjunto dos acontecimentos
políticos verificado nos meados do seculo XV, época em que o escritor pensou e
escreveu o seu livro, ou é, finalmente, uma concepção em grande parte pessoal
do escritor, que julga o passado que descreve à luz do presente que vive?
A primeira condição para podermos saber até que ponto a vida e a
experiência do autor se projectam na sua obra seria o conhecimento pormenorizado
dessa vida. E o que a tal respeito sabemos não é muito. Ignora-se,
designadamente, quando e onde nasceu, de que meio social provinha, o que fez em
jovem, quando e onde morreu. O que se pode dar por seguro, ou pelo menos muito
provável, é o seguinte:
- Nasceu entre 1380 e 1390. Os motivos que há para o pensar são que em 1437 tinha um filho formado em medicina que estava ao serviço do infante Fernando. Ora os estudos médicos eram então demorados, e dificilmente se pode admitir que o rapaz tivesse menos de trinta anos naquela data. Se foi o primeiro filho, é o único de que há notícia, e se nasceu de um primeiro casamento, teríamos o casamento por volta de 1407, e o nascimento do escritor uns vinte a vinte cinco anos mais cedo. Muito antes não poderia ter sido, visto que em l459 ainda vivia. Este cálculo situaria o nascimento entre 1387 e 1382. É realmente à volta disso que andam as estimativas dos biógrafos.
Em 1418 é pela primeira vez mencionado como guarda das escrituras da
Torre do Tombo. Era um cargo muito mais importante do que hoje nos poderia
parecer. Não existiam conservatórias prediais nem do registo civil e a fonte de
muitos direitos estava em títulos individuais, de que o único exemplar que
fazia fé era o que se guardava no arquivo do Estado. Era pois o guarda das
escrituras quem conservava, buscava e mandava certificar as fontes do direito
de cada um.
O facto de atingir essa função relativamente novo (trinta e poucos
anos) revela que já então devia ter longa carreira de funcionário, ou gozar de
protecção valiosa. De facto, sabe-se que anteriormente tinha sido escrivão dos
livros do rei, isto é, amanuense nas secretarias regias. Em 1423 sabemos que
acumulava o cargo de guarda-mor com um outro: o de escrivão da puridade do
infante Fernando. Era um lugar de confiança, que exercia ainda em 1437.
Em 1428 exerce, além das duas anteriores, mais uma função:
- notário público do dito senhor rei (João I) em todo o seu senhorio.
Nessa qualidade assistiu em Estremoz ao acto pelo qual João I passou
procuração ao infante Duarte com poderes gerais e especiais para tratar das negociações
relativas ao dote do casamento dele Duarte com D. Leonor de Aragão. Assistiu ao
acto, mas não foi ele quem executou materialmente o instrumento, fê-lo escrever
por Pedr’Eanes, seu fiel escrivão. Era certamente o rei quem escolhia o notário
para os seus próprios actos, havia vários tabeliães-gerais, e isto sugere que
Fernão Lopes seria homem da confiança pessoal do monarca.
Depois de João I morrer (14 de Agosto de 1433) foi nomeado cronista.
Mais exactamente: recebeu encargo de pô, em crónica as histórias dos reis que
antigamente em Portugal foram, Isso mesmo os grandes feitos e altos do mui virtuoso
e de grandes virtudes el-rei meu senhor e padre cuja alma Deus haja. O alvará
de nomeação tem a data de 19 de Março de 1434, e já se afirmou que antes dessa
época já exercia a função, pois a forma usada (temos dado carrego) parece
referida ao passado. Mas suponho que o facto de nesse mesmo documento se mandar
abonar o vencimento respectivo a partir de 1 de Janeiro daquele ano é
suficiente para mostrar que a nomeação é realmente dessa altura.
Mas tudo indica que, muito antes de 1434, já Fernão Lopes seria, além
de burocrata, historiador. É um problema muito discutido o de saber se são, ou
não, de sua autoria as cronicas dos Reis de Portugal que chegaram ate nós em
duas cópias, conhecidas por Crónica dos Cinco Reis e Crónica
dos Sete Reis, e encontradas pelos eruditos Magalhães Basto e Silva
Tarouca respectivamente na Biblioteca Municipal do Porto e nos arquivos da Casa
do Cadaval. Mas tudo indica que sim, e que essa crónica representa a parte até há
pouco considerada perdida da obra de Fernão Lopes.
No manuscrito do Porto indica-se a data em que a redacção foi iniciada:
1 de Julho de 1419, passado portanto cerca de um ano sobre a data em que Fernão
Lopes foi nomeado guarda das escrituras do arquivo, entre essas
escrituras estavam muitos dos elementos que serviram de fontes às crónicas». In José
Hermano Saraiva, Outras Maneiras de Ver, Temas Portugueses, Círculo de
Leitores, 1981.
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