sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Carta de Marvão. Aníbal Belo (1945-2001). «E apontou-me, silencioso, para uma janela meio fechada, por dentro da qual se vislumbrava um vulto, de feições talmúdicas, que parecia estar a dar brilho, com denodo e afinco, talvez a vidros ou espelhos, tão grande o ar concentrado e esforçado do seu trabalho…»

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«Ao ver-me assim tão enleado nestas coisas do passado e do futuro, o Garcia, adivinhador de que sou um seduzido encartado, estancou-se mais à frente ao lado doutra memória, erguida em monumento de granito, a Garcia de Orta. Estarrecido, lembrei-me da perseguição que fiz às suas pegadas, quando, levado pela mitologia individual e pela nostalgia, fui ter à Índia, na companhia do José Rodrigues, à procura dos ecos dos sinos da Sé da Velha Goa, onde as lágrimas e emoções se caldeavam para baixo e para cima, como feijões em panela fervida. Vimo-lo, com uma dianteira de quinhentos anos, lá ao fundo dos séculos, na sua Ilha de Bombaim, como botânico, a tentar analisar os botões das camélias locais, por achar apoucados os conhecimentos científicos das Universidades europeias, de que era mestre. E depois, numa curva da história, vimos a sua silhueta à entrada dos arcos dos Vice-Reis em Goa, com muita pressa para matar a ânsia de saber e, depois, na extensão do tempo, vimo-lo, ao longe, com o seu livro Colóquios dos Simples e das Drogas e Coisas Medicinais da India, debaixo do braço, a agradecer ao Luís de Camões a ode que lhe tinha dedicado, quando o José Rodrigues lhe assobiou, para lhe ver o tamanho das barbas para o esboço do retrato que ia ficar na galeria dos Vice-Reis. Ele olhou para trás, para a penumbra do tempo, onde estávamos instalados e, indignado, começou a insultar-nos e a culpar-nos pelos desvios dos acontecimentos nos mapas e nos anais, e o Camões a olhar-nos de esguelha, que de outro modo não podia, por causa da pala...
Assim oniricamente memoriado, quando vim a mim, agradeci à centelha do acaso que me levou àquele território, ali no Alentejo, mesmo bordado para as minhas costuras, e talhado para o tamanho das hordas dos meus sentimentos. Acrescentando uns passos em frente, sugeriu-me que eu o seguisse, de acordo com os calendários dos números das portas e com a topografia do terreno, e começou depois a descer uma rua estreita e empedrada, que desaguava numa fonte linda, de estilo manuelino, guinando, suavemente, para o começo duma outra, com um passadiço, e mostrou-me uma casa, caiada, como todas, de branco.
E apontou-me, silencioso, para uma janela meio fechada, por dentro da qual se vislumbrava um vulto, de feições talmúdicas, que parecia estar a dar brilho, com denodo e afinco, talvez a vidros ou espelhos, tão grande o ar concentrado e esforçado do seu trabalho, ali ao pé, nós a olhar para ele, ele a zunir, com lixas, as arestas das lentes e das ópticas, talvez para monóculos de diletantes pré-românticos. E, enquanto sanicava com as mãos e com os braços, num gesto de plaina ou goiva, em movimentos de vai-vem, meditava em Deus e na sua essência, na sua natureza, sem medo do seu pensamento.


Entrementes, um inquisidor, talvez o mor, não sei, agarrou o batente da porta e bateu três vezes, três pancadas de Molière, mas estas eram de ferro. O filósofo veio à janela, olhou, de dentro para fora, e de cima para baixo, e, ao ver o frade branco, insultou-o, com muitos ralhos, com imprecações intermináveis, com maldições eternas». In Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.

Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT