In Memoriam de A.D.A.
Esfinge ou a poesia
«Tudo se está fazendo. Se cruzarmos os braços, as coisas e as ideias
voltam aos caos, e os fantasmas da necessidade e da morte adquirem novo alento
pela nossa desistência. Era indecente quem só tivesse carregado a cruz uma só
vez. O cristão sabe que deve levá-la todos os dias. A cada hora basta a sua pena,
mas cada hora precisa duma dor nossa para se sentir acordada. A Esfinge
não è um enigma resolvido nem a resolver nos séculos futuros. A Poesia
não é uma árvore morta nem a fazer florir nas colinas de amanhã. É a resolução
que damos à história, aos encontros, às promessas, de cada vez que consentimos
descer das palavras à dificuldade dos actos. Ou subimos dos actos à corola
mágica das palavras com que os arrancamos à certa desolação do tempo e da
morte.
Como na hora em que concebemos a Esfinge para nos tocarmos melhor,
continuamos sendo aqueles que procuram danadamente uma autêntica face de homem,
uma existência em busca duma essência. Ou uma essência descontente de si mesma
buscando-se entre possibilidades múltiplas de existir. Por isso sabemos hoje
que não teremos uma face diferente daquilo que fizermos. Mas fazer de novo é continuar a
criação e criar é ser poeta. O que significa finalmente não ter outro
senão o que a Poesia nos modelar.
Tempo e poesia
“Criação quer dizer saudade…
In Teixeira
de Pascoaes, Verbo Escuro.
O paradoxo do Instante não é o de acabar quando surge. Esse
dever o impomos nós ao banal instante,
talhado na peça imaginariamente substancial do Tempo. O paradoxo do Instante
é o de nunca ter principiado e não poder ter fim. Ninguém verá a cabeça
nem a cauda de tal monstro. Nascemos a bordo e a caminho, como Pascal, seu primeiro
grande viajante sem bagagem, claramente o soube. A forma do barco onde vamos
sem a ver é o mesmo Instante. Nele deslizamos, estranhamente parados, não para
a Eternidade, mas na Eternidade. Atrás deixamos a espuma do Tempo. Contudo, o Instante
nem é eternidade nem tempo, miragens da travessia quando ela é um deserto ou
mar absoluto. Do porto onde não chegaremos formamos a Eternidade, do que não
deixámos, o Tempo. Ambos são sósias do Nada, formas gémeas e inversas de
perder o Instante. O erro será imaginar esse Nada como uma ficção. A
nossa permanente alienação basta para lhe dar o peso de que necessita para que
o confundamos com a Realidade. O Nada resume desmedidamente todas as
formas do obscurecimento do nosso parentesco profundo com a Realidade.
Só o Instante,
tradução dessa intimidade com o Ser, detém, frágil mas decisivamente,
esse Nada
e a queda humana que o constitui.
O Instante toca-nos, ou somo-lo, a um tempo com uma leveza de
sonho e um excesso que nos desfaz. Quem cairá na tentação de figurar o infigurável?
Sá-Carneiro diria gloriosamente dele que é aquela manhã tão forte que nos
anoitece. A sua realidade é a de um só dia, o dia intérmino da presença do homem
a si mesmo, transparente e duro como diamante, cujo impensável nome é Sempre.
Com visionária limpidez assim o anteviu Teixeira
de Pascoaes, ao baptizar um dos seus livros com o título luminoso. Em sua
vivida e vivente imobilidade se resolve, sem se resolver de todo, o mistério da
nossa situação. Nele se unem, enfim, os mortais dilemas que o Tempo,
como ser real, sempre apresentou a todos os homens, fascinados por uma esfinge
que é a sua própria sombra». In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia,
Gradiva, Lisboa, 2003, ISBN-972-662-907-1.
Cortesia de Gradiva/JDACT