«Atentemos neste exemplo de uma família, em lato sensu, elvense.
Afonso Rodrigues e Catarina Álvares, casal de judeus baptizados em l497, natural
de Elvas, viram chegar à idade adulta seis filhos, dois dos quais seriam
relaxados, já velhos, um em Évora e outro em Llerena. Mor Rodrigues uma das
suas filhas, entregue à justiça secular em Évora, com cerca de 75 anos, teve,
do seu casamento com João Álvares, alfaiate, também seis filhos . Um deles,
Álvaro Fernandes casaria com Isabel Rodrigues, filha de Maria Rodrigues, sua tia,
provavelmente uma irmã de sua mãe.
O casal Afonso Fernandes e Isabel Rodrigues, irmã de João Álvares, marido
de Mor Rodrigues, viria a ter dez filhos. Um deles, de nome Álvaro Fernandes ,
como seu primo, casaria com Leonor Alvares , filha de Simão Rodrigues, irmão da
tia por afinidade, etc..
Nem sempre os casamentos eram feitos entre membros da mesma comunidade,
mas também com os das comunidades vizinhas, como Badajoz, Alter do Chão, Cabeço
de Vide, Portalegre, etc.. Em casa trabalhavam as filhas com a mãe e algumas
escravas pretas e serviçais, nas famílias mais abastadas, Além da lida da casa,
a mulher dobava, fiava, tecia; amassava o pão que cozia em forno próprio ou
não; cozinhava a carne e o peixe e fazia bolos em alturas de festas, como os
folares e as queijadas.
O porco raramente entrava na sua alimentação, só o comendo por receio diante
dos cristãos velhos, quando não havia o pretexto de uma indisposição para o
substituir por outro prato. Refogavam a cebola com azeite e não com o toucinho,
como estes. Tirar o sebo à carne e dessangrá-la, salgando-a e lavando-a, eram
tidos como costumes judaicos, assim como a degolação dos animais sem
aproveitamento do sangue. À mulher caberia a transmissão do fabrico dos bolos
ázimos pela Páscoa Judaica, assim como a permanência de certos pratos de guisado,
como o designado adefina. Era ela também quem mudava, de motu proprio ou instigada
por outrém, a roupa da casa às sextas feiras, limpava e acendia as candeias com
azeite e torcidas novas por honra do sábado.
A família era o meio difusor ideal da transmissão e permanência da tradição
e da Lei mosaica. Em casa de algumas mulheres viúvas de Elvas fazia-se sinagoga
clandestina, como na de Mor Rodrigues. No entanto, as famílias cristãs-novas
destes concelhos alentejanos encontravam-se em desagregação por força da Inquisição
(maldita) e dos interesses económicos. Uns fixavam-se em Lisboa, como Luís
Gonçalves Pache, mercador; outros em Santarém, como Manuel Rodrigues, tratante.
Mas a maioria partia para Castela, Flandres, o Golfo, a Índia, o Perú.
O reino vizinho era o refúgio mais próximo mas nem sempre o mais feliz.
A chegada de imigrantes tornava os inquisidores desconfiados e muitos dos
cristãos-novos portugueses residentes em Badajoz, Montijo, Granada, Albuquerque,
etc. acabariam por ser apanhados pela Inquisição (maldita) de Llerena, Uns
seriam relaxados, como os pais de Diogo Álvares Soriano, mercador de Elvas,
outros a maioria, sairia com hábito penitencial e cárcere, como Afonso Álvares
e Mor Fernandes, irmãos de Beatriz Álvares, mulher de mestre Henrique de Elvas,
Mécia Rodrigues e seu marido, Álvaro Rodrigues, também daqui naturais e a
residirem no Montijo, Miguel Fernandes de Portalegre, etc..
Badajoz era de longe a comunidade do reino vizinho que, dada a sua proximidade
e relacionamento familiar com Elvas, sobretudo, mais cristãos novos portugueses
teria. Mas não era a única. O comércio levava-os a estabelecerem-se também,
quer por conta própria , quer por conta de um familiar mais rico que permanecia
em Portugal, como veremos, em Sevilha, Córdova, Granada, Málaga e até mais longe
como Valença de Aragão e Múrcia». In Maria Ferro Tavares, Judeus e Cristãos
Novos no distrito de Portalegre, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa, Acta do I Encontro da História Regional e Local,
Setembro de 1987.
Cortesia da FCSHUNL/JDACT