segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Nadja. André Breton. «O meu conceito de “fantasma”, no que revela de convencional tanto no aspecto como na cega submissão a certas contingências de hora e de lugar, vale sobretudo para mim como imagem acabada de um tormento que pode ser eterno»


(1896-1966)
Tinchebray, Orne, França
jdact e cortesia de wikipedia

«Se já no desenvolvimento desta obra o acto de escrever, e mais ainda o de publicar qualquer espécie de livro, é relegado para o plano das vaidades, que pensar da complacência do seu autor ao pretender, tantos anos passados, melhorar-lhe um pouco a forma! Convém distinguir, entre o que se refere, bem ou mal-avindo nesta narrativa, ao teclado afectivo e só a ele se remete, o essencial, bem entendido e a parte relacionada com o dia-a-dia, tão impessoal quanto possível, articulando-se os pequenos acontecimentos uns nos outros de determinada maneira.Se a tentativa de retocar à distância a expressão de um estado emocional, à falta de poder revivê-la no presente, se salda inevitavelmente pela dissonância e pelo fracasso, talvez não deixe de ser razoável aspirar a um pouco mais de fluência e de pertinência nos termos.
De modo muito especial, é possível que um resultado assim se possa obter com Nadja, em virtude de um dos dois principais imperativos antiliterários a que esta obra obedece, condenada no Manifesto do Surrealismo, assim também o tom adoptado na narrativa toma por modelo o da observação clínica, sobretudo neuro-psiquiátrica, que tende a conservar os vestígios de tudo o que interrogatório e exame podem revelar, sem se embaraçar com miúdas questões estilísticas. Atenta a não alterar em nada o documento tomado ao vivo, se aplica, não só a Nadja, 'mas também a terceiras pessoas. O despojamento voluntário de um texto como este contribuiu sem dúvida, ao recuar o seu ponto de fuga além dos limites usuais, para a renovação da sua audiência.
Subjectividade e objectividade, no curso de uma vida humana, travam uma série de assaltos, dos quais a primeira depressa costuma sair muito maltratada.

Quem sou? Se excepcionalmente apelasse para um provérbio: com efeito, o sentido de tudo não poderia resumir-se em saber quem assombro? (Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és). Devo confessar que esta palavra me desorienta e tende a estabelecer entre mim e certos seres relações mais singulares, inevitáveis e perturbadoras do que em princípio supunha. É uma palavra que diz muito mais do que quer dizer, que me faz representar, vivo, o papel de fantasma, que alude, sem margem para dúvidas, ao que foi preciso que eu deixasse de ser a fim de ser quem sou. Tomada nesta acepção de um modo quase abusivo, sugere-me que as manifestações objectivas da minha existência, pelo menos as que assim considero, manifestações mais ou menos deliberadas, são tão-só o que transparece, nos limites desta vida, de uma actividade cujo campo verdadeiro me é totalmente desconhecido. O meu conceito de fantasma, no que revela de convencional tanto no aspecto como na cega submissão a certas contingências de hora e de lugar, vale sobretudo para mim como imagem acabada de um tormento que pode ser eterno.


É provável que a minha vida seja apenas uma imagem deste género, que esteja condenado a voltar atrás quando imagino explorar, a tentar conhecer o que deveria reconhecer sem esforço, a aprender uma parte irrisória daquilo que esqueci. Esta opinião a meu respeito só me parece falsa na medida em que me pressupõe a mim próprio e situa arbitrariamente num plano de anterioridade uma figura rematada do meu pensamento sem razão para se harmonizar com o tempo, uma figura que implica, nesse mesmo tempo, a ideia de qualquer perda irreparável, penitência ou queda cuja ausência de fundamento moral seria insusceptível de admitir, a meu ver, a mínima discussão. O importante é que as aptidões particulares que lentamente me vou descobrindo neste mundo nunca me distraiam de uma aptidão geral que me seria própria e não me é dada. Para além de toda a espécie de gostos que me conheço, de afinidades que me sinto, de seduções que me assaltam, de acontecimentos que me acontecem e só acontecem a mim, de muitos movimentos que me vejo executar, de emoções que sou o único a suportar, esforço-me, em relação aos outros homens, por saber em que consiste, ou em que se firma, a minha diferença. Não será na medida exacta em que consiga tomar consciência desta diferença que hei-de descobrir o que vim fazer a este mundo e qual a mensagem única de que sou portador, ao ponto de só a minha cabeça responder pelo seu destino?» In André Breton, Nadja, Editorial Estampa, colecção Novas Direcções, Lisboa, 1971.

Cortesia de Estampa/JDACT