quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Inês de Portugal. Pequenos Prazeres. João Aguiar. «O que ganhámos depois com a morte dela, senão mais escândalo e mais mortes? E três bastardos órfãos, três crianças inocentes privadas da mãe. Duas dessas crianças inocentes são varões e quando forem homens feitos terão a apoiá-los o poder dos Castro»


jdact e cortesia de wikipedia

«Sob o sol furioso de Agosto, a hoste prossegue, os cavalos ferem a terra com as patas e levantam mais poeira que começa logo a rodopiar. É um dia de sol e de vento. Sob o sol furioso de Agosto, a hoste prossegue, os cavalos ferem a terra com as patas e levantam mais poeira que começa logo a rodopiar. É um dia de sol e de vento. No interior da tenda real, que oscila ligeiramente a cada assalto da ventania, Beatriz olha, devagar, à sua volta. O arcebispo, que hoje trocou o elmo pela mitra e a cota de malha pelas vestes eclesiásticas, parece dormir solenemente encostado ao báculo. O escrivão consulta com nervosismo disfarçado o documento que redigiu durante a noite, há-de perguntar a si mesmo se não deverá ainda fazer-lhe emendas. O olhar da Rainha passa depois, agora à pressa, como a fugir-lhes, por Pero Coelho, por Diogo Lopes Pacheco e pelo meirinho-mor, Álvaro Gonçalves, que, pensa ela, não deveriam encontrar-se ali. A sua presença é um gesto de soberba inútil, talvez perigoso. Porque eles estavam presentes em Santa Clara, quando foi pronunciada a sentença, e isso basta para valer-lhes o ódio mortal do Infante. A todos por igual, ainda que um ou outro tenha menos culpa no feito que então se fez. Mas quem pode agora falar de culpas, com o reino retalhado pela guerra que um filho moveu ao pai?
Neste espaço restrito em que as respirações se chocam não há murmúrios nem chamamentos, a tensão é um fardo que pesa sobre todos e lhes rouba a força para falar. Os atalaias acabam de avisar que avistaram o Infante e a sua gente. A Rainha observa o rosto inteligente de Álvaro Pais, que tomou discretamente uma posição recuada de onde pode tudo observar sem ser notado. Também ele a fita, com uma expressão de encorajamento. Uma corte devia ter mais homens assim, tranquilos, de cabeça fria e capazes de fazer do interesse geral a ambição das suas vidas, prontos sempre a calar a paixão e a dar ouvidos à razão. Reprimindo um suspiro de fadiga, Beatriz recosta-se na cadeira e levanta a mão num gesto lento até que os dedos tocam de leve a cabeça. Como aquela coroa a oprime, neste momento. Como a esmaga.
Não, reflecte, não é o diadema, pois está já afeita ao seu peso. É outra coisa. O cansaço de uma vida gasta a tentar calar a voz das espadas, a tentar fazer definhar ódios, malquerenças, ambições que lançam uns contra os outros os homens da sua família e atrás deles os seus reinos. O marido contra o sogro, o marido contra o sobrinho e agora, mágoa suprema, o seu próprio filho contra o pai. Tal como este se levantou um dia contra o seu pai, El-Rei Dinis.
Pecados velhos pagos com novos pecados. Mas, para ela, uma vida inteira de preces, conselhos, apelos, súplicas, graves conciliábulos com bispos, grandes senhores, conselheiros. A criminosa, obsessiva paixão do filho pela Castro. Foi culpa nossa, quem sabe, fizemos tudo o que não devíamos ter feito. Ao primeiro olhar apercebido, dele para ela, devíamos tê-la banido do reino, nesse mesmo dia, e em vez disso obriguei-a a ser madrinha do meu primeiro neto, como se um feitiço urdido pelo demo pudesse quebrar-se tão facilmente. Quando ele a tomou como sua e a levou para Coimbra, em desafio à lei de Deus e à lei do reino, devíamos tê-los então apartado e não o fizemos com força bastante.
O que ganhámos depois com a morte dela, senão mais escândalo e mais mortes? E três bastardos órfãos, três crianças inocentes privadas da mãe. Duas dessas crianças inocentes são varões e quando forem homens feitos terão a apoiá-los o poder dos Castro. Os bastardos, na sua inocência, são o mais terrível castigo com que Deus pune o adultério de um rei. Quantas vezes Beatriz viu Portugal, Castela e Aragão divididos, incendiados, ensanguentados pela simples presença desses pequenos anjos que depois se tornam homens e ganham ambição ou excitam a ambição dos outros.
Os bastardos. Ah, não exigir a honra aos homens aquilo que exige às mulheres. Como seria diferente o mundo se a honra de homens e mulheres fosse a mesma. Toques de charamela, vozes, chiar de arreios. Ele chegou, estará aqui em breves instantes. Empenhou-me a sua palavra, há-de jurar. Não poder eu tomá-lo nos meus braços e beijá-lo. Isso é impossível, bem o sei, pois não é só meu filho, é também o Infante, herdeiro destes reinos, que se alevantou em guerra contra El-Rei, seu pai e seu senhor. Mas como é duro ter de ser Rainha antes de poder ser mãe». In João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN 972-41-1822-3.

Cortesia de ASA/JDACT