«E esclarecer tantos dos equívocos, meias verdades ou falsidades que
sobre ele ainda persistem. Cumprir, enfim, um dever para consigo e para com a
história. A palavra flui, serena e lúcida, sempre que se lhe pede uma reflexão
sobre o fenómeno político e social. Aí o intelectual solta-se e chega a
entusiasmar-se, nas margens de um pensamento que ora se desdobra em raciocínios
de grande coerência interna, ora se condensa em sínteses de assinalável
precisão e rigor. Mas logo se retrai quando lhe é pedido o dado, o facto
concreto, o nome, a data. Não tenho memória para essas minudências,
explica com uma nota de visível enfado na voz e no gesto.
Homem de esquerda, antes e acima de tudo pela convicção inabalável de
que as ideias podem mudar o mundo, coube-lhe o papel ingrato de controlador do
sonho:
- ‘Obrigado a confrontar os seus ideais com a realidade concreta, foi incansável na procura de uma via política original, no nosso país, para o socialismo que não fosse a transposição mecânica dos modelos político-sociais conhecidos’.
Ao mesmo tempo que defendeu intransigentemente um projecto autónomo
para o MFA. Talvez por isso alguém afirmou que era um homem que tinha muitas das
qualidades dos comunistas italianos e muitos dos defeitos dos militares
portugueses.
O seu papel central na descolonização, bem como os importantes textos
que redigiu, O Movimento, as FA e a Nação, O Programa do MFA, O
Plano de Transição e o Documento dos Nove, não por acaso os
únicos que influenciaram decisivamente o rumo dos acontecimentos, produzidos em
momentos diferentes mas igualmente críticos da Revolução, não são, ao contrário
do que possa pensar-se, a tradução fiel do seu pensamento, mas antes aquilo que
em seu entender era possível dadas as circunstâncias. Quem foi
que disse que ser revolucionário era pretender o máximo de revolução possível?
Não foi nunca um conformado e muito menos um desistente, embora
estivesse longe de ser um optimista. No notável documento que produziu quando
abandona o Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 1976, combinava a inquietação
e a revolta pelos rápidos sinais de degenerescência de um Abril tão próximo e
afinal tão distante com a invejável serenidade pessoal de ter feito o que
devia:
- ‘Por grandes que tenham sido os acidentes de percurso, nós não tergiversámos, não traímos nem renegámos nas peripécias da luta, nos atalhos da História, os princípios que animaram o nosso propósito inicial e deram a sua razão de ser a toda a nossa prática’.
Esses receios subiriam de tom com o andar do tempo e com eles também
uma contida amargura pessoal pela forma indigna como o poder político empurrou
pela escada a baixo o Conselho da Revolução, com isto insinuando a
recusa dos conselheiros em cumprir a estrita legalidade que sempre respeitaram
escrupulosamente». In Melo Antunes, O Sonhador Pragmático, Maria Manuela Cruzeiro e
Boaventura de Sousa Santos, Histórias da História, Editorial Notícias, 2005,
ISBN 972-46-1563-4.
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