terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Tempo e Poesia. Eduardo Lourenço. Poética Mítica. «Como a de “Teseu”, a nossa circular aventura decorre num labirinto buscando o dono dele, desde sempre aí esperando-nos, mas impossível de tocar se para ele não no encaminham os fios do amor e da esperança»

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In Memoriam de M.L.A.C. e J.L.T.

Tempo e poesia
«Nele se unem, enfim, os mortais dilemas que o Tempo, como ser real, sempre apresentou a todos os homens, fascinados por uma esfinge que é a sua própria sombra. Aristóteles concebeu bem essa eterna imobilidade imóvel, coração inaudível de todas as coisas. Mas colocou-a nos altos céus, na mais distante esfera, onde de facto está, mas de diferente modo. Foi a absurda proximidade dessa presença, o ser-mo-la, que desnorteou o mestre daqueles que sabem. Uma tal presença contamina tudo com a sua fantástica realidade, mas sobre nada sopra com mais violência que sobre a árvore da lógica, arquétipo elementar da nossa morte. Ela é a árvore da vida que não conhece morte, anterior à Logica, espelho de uma duplicação impossível. Sempre ou Instante são ainda nomes de empréstimo, cheirando demasiado à fascinação temporal que desejam vencer, para que nos contentem. Como nomear a fabulosa árvore sem morte sobre a qual, pássaros sonâmbulos, acordamos perpetuamente em atraso e adormecemos apressadamente em avanço? O Imóvel Motor reclamado pelo Filósofo é demasiado abstracto e exangue para dar forma à experiência sensível da nossa própria inacessibilidade. Também configura mal o ardente silêncio onde vamos. Acaso um poeta nos seja, de novo, de mais préstimo que um puro Filósofo.
Para a radical imobilidade da nossa vertiginosa vida e para o gritante silêncio com que clama absurdamente por si mesma, onde encontraremos uma mais sensível figura que nessa Saudade em que o mesmo Pascoaes resumiu o nosso ser profundo? Enganam-se os que vêem nela apenas a disposição anímica prevalente da nossa particular existência. É só uma atenção aguda ao que ela traduz o que nos pode ser imputado. Enganam-se mais ainda os que nela denunciam a mera complacência pelo nosso passado. A Saudade é a sensível existência humana, a si mesma inacessível e próxima. Inacessível porque próxima.
Como a de Teseu, a nossa circular aventura decorre num labirinto buscando o dono dele, desde sempre aí esperando-nos, mas impossível de tocar se para ele não no encaminham os fios do amor e da esperança. São eles que nos asseguram o regresso que a Saudade significa. Nela vemos que os meandros sem fim da nossa caminhada não conseguiram expulsar-nos da terra incircunscrita do Instante. Quem encontramos é o mesmo que buscava, o labirinto é a própria busca antes que a Saudade, de súbito, a faça reverter para o lar da nossa perpétua infância. Aí vemos que o esquecimento não triunfou, que o Instante onde enraizamos corre imóvel sob o seu reflexo tornado criatura a que chamamos Tempo. A segunda vez, o re-conhecimento que a Saudade manifesta é a verdadeira primeira vez, terra de nascimento e não túmulo. Com profunda justiça foi que Pascoaes lhe chamou Criação...» In Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Gradiva, Lisboa, 2003, ISBN-972-662-907-1.

Cortesia de Gradiva/JDACT