«De facto,
esses dois sonetos ocupam a primeira e a segunda posição nas Rhythmas
de 1595, privilégio de que vão continuar a gozar em quase todas as ulteriores
edições camonianas. Cabe indicar como única excepção, quanto ao soneto Eu
cantarei do Amor tão docemente, a edição da Lírica de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes
Vieira, onde figura com o número 38, decerto para adaptar o seu sentido
à ideia do primeiro dos editores acerca de uma relação amorosa entre Camões e a Infanta Dona Maria. Fica à margem a edição Obra completa organizada
por António Salgado Júnior, onde se utiliza o critério alfabético para a
ordenação dos textos.
No
soneto Eu cantarei do Amor tão docemente, o emissor lírico promete
cantar com extrema doçura o Amor, para levar quantos ainda não experimentaram a
sua força a senti-la. Há-de o fazer manifesto perante todos os que escutarem o
seu canto, descrevendo a paixão em tons suaves. A voz poética anuncia a precisa
exposição dos pequenos desapontamentos, dos lamentos proferidos com abandono,
do tímido atrevimento e das mágoas da ausência, emoções habituais para quem
ama.
Além
disso, o emissor lírico propõe-se também cantar a amada, referindo poucos
pormenores em particular do recatado desdém com que corresponde às
manifestações do seu amor. Com toda a modéstia, todavia, reconhece que não
há-de elevar o seu canto como gostaria, pois confessa faltarem-lhe sabedoria,
génio e talento para louvar a sublime e maravilhosa dama. Não será demais
apontar que do soneto Eu cantarei de amor tão docemente há
uma paráfrase parcial, relativa sobretudo à primeira quadra, no poema Yo cantaré de amor tan dulcemente,
do autor espanhol Gabriel Bocángel.
Outra
composição camoniana que tem características de soneto-prólogo é Sospiros
inflamados, que cantais. Também neste caso o poema é apresentado aos
leitores como sensata advertência de quem é experiente. Trata-se de uma nova
palinódia poemática em que o amante, na qualidade de autor implicado, como
responsável pela escrita dos poemas, se arrepende dos antigos erros passionais,
e pede que os textos que se seguem sejam entendidos na sua feição exemplar e
instrutiva. Apesar disso, Storck
achou que Sospiros inflamados, que cantais poderia ser considerado, mais
do que prólogo, epílogo poético expressamente composto para fechar a colecção
de poesias amorosas. Seria possível relacionar a opinião do erudito alemão com
o seguinte juízo de Leal de Matos:
- Soneto testamentário, por assim dizer, já que, perante a situação de morte iminente, se dirige à obra em conjunto, impondo-lhe um sentido último, e, para além deste sentido, a encarrega de uma mensagem.
Quanto
às fontes de Em quanto quis Fortuna que tivesse, deve-se dizer, antes de
mais, que Faria Sousa, ao
comentar o soneto, expõe um quadro que contextualiza o subgénero soneto-prólogo,
traçando a sua história com descomunal cultura literária:
- Este soneto es la proposición de estas Rimas; y la más elevada que yo hallo en todos los autores de semejantes poemas. Parece que con decir esto me obligaba a copiar aquí las de los mejores. Excúsolo, por no despender tiempo en cosas que no sirven a la explicación a que me expongo; y más cuando estoy viendo que esto sólo me hará ser bastantemente dilatado, aunque no he de decir más de lo preciso; y también porque los eruditos lo pueden examinar, si no quisieren dar crédito a este nuestro juicio. Petrarca es el primero que propuso en forma sus varias Rimas; y después le imitaron el Bembo, el Casa, y otros quedándole inferiores. Nuestro magisterio Garcilaso no ordenó las suyas para estamparlas, y si llegara a hacerlo no fuera sino con todo acierto. Quien las ha publicado eligió de sus sonetos el que realmente era más propio para el principio.
Embora
não seja conhecido nenhum modelo preciso que Camões tenha imitado, existem várias
composições, entretanto, que apresentam analogias indubitáveis com Em
quanto quis Fortuna que tivesse. Como Faria Sousa refere, a fonte do
subgénero soneto-pró-logo encontra-se em Petrarca, especificamente
no soneto Voi ch’ascoltate in
rime sparse il suono, que ocupa o primeiro lugar no Canzoniere
como proémio poético:
Voi ch’ascoltate in rime sparse il
suono
di
quei sospiri ond’io nudriva l core,
in
sul mio primo giovenile errore,
quand’era
in parte altr’uom da quel ch’i’ sono,
del vario stile in ch’io piango et
ragiono
fra
le vane speranze, e l van dolore,
ove
sia chi per prova intenda amore
spero
trovar pietà, non che perdono.
Ma
ben veggio or si come al popol tutto
favola
fui gran tempo, onde sovente
di
me medesimo meco mi vergogno.
Et
del mio vaneggiar vergogna è l frutto,
e
l pentersi, e l conoscer chiaramente
che
quanto piace al mondo è breve sogno.
A coincidência mais importante entre Em quanto quis Fortuna que
tivesse e o poema petrarquista é o uso do vocativo pronominal vós
para apostrofar os leitores, numa invocação que lhes é dirigida como
destinatários da composição. Além disso, é notória a similitude decorrente de
uma focagem temporal que permite ao emissor lírico contemplar os dias do
passado a partir do arrependimento do presente, de tal modo que os seus versos
se fazem exemplo dissuasor para outros amantes». In Xosé Manuel Dasilva.
Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que
tivesse, revista Limite nº 5, Universidade de Vigo 2011.
Cortesia
de Limite/JDACT