sábado, 15 de dezembro de 2012

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «O Valido ficou em silêncio, a olhar para o friso da parede fronteira que confinava com o artesoado. Uma loucura de esfinges e de dragões multicéfalos de muito boa factura. - O conde da Peña Andrada. E quem é esse?»



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«O rei olhava em frente, como se o envolvesse o infinito. Tinha cara de pasmado. Que fitais com tanta atenção, Senhor? O corpo de Marfisa. Não posso ver outra coisa. O moço de câmara que emprestara o meio ducado ao rei entrou no gabinete pela porta dos confidentes e ficou quieto, humilde, mas fitando de soslaio o Valido (espécie de primeiro-ministro característico dos reinados dos monarcas espanhóis durante o século XVII). - Passa-se alguma coisa, Cosme? - Vossa Excelência que junte o fio à meada:
  • Sua Majestade não dormiu no palácio, tem a cama por desfazer e não aparece em parte nenhuma. Ontem, quando me despedi dele, pediu-me meio ducado.
 - E que deduzes tu, Cosme? - Que o rei foi para a farra, Excelência; meio ducado é o que pagam os reis às suas p…., conforme sempre ouvi dizer. - Há coisas, Cosme, que não devem ouvir-se nunca. - Peço-lhe perdão, Excelência, mas, graças a que não sou surdo, Vossa Excelência recebe-me em segredo. - Tens razão, Cosme. E saiu sozinho, o rei? - Ao certo, ao certo, não sei. Mas, quando eu o deixei, estava com o conde da Peña Andrada.
O Valido ficou em silêncio, a olhar para o friso da parede fronteira que confinava com o artesoado. Uma loucura de esfinges e de dragões multicéfalos de muito boa factura.
 - O conde da Peña Andrada. E quem é esse? - Não saberia explicar-lho, senhor, a não ser que é um cavalheiro jovem, de muito bom aspecto, que o rei trata com confiança. - Retira-te, Cosme. Obrigado.
Cosme inclinou-se e saiu pela mesma porta por onde tinha entrado. Nessa altura, o Valido fez soar a campainha, de som fino, mas penetrante. Entrou um pajem e ficou mudo junto da porta. O Valido escreveu umas letras num papel. - Leva isto ao chanceler-mor e que traga imediatamente o que lhe peço. Saiu o pajem, o Valido murmurou: - Com que então às p…., sem eu saber.
A cara do Valido não parecia muito satisfeita, nem muito tranquilo o seu olhar. O chanceler-mor não tardou muito a chegar. - Aqui está o que pede, Excelência. - Custou-te muito encontrá-lo? - Nada, Excelência. Estava em cima da minha mesa. - E por que é que lá estava? Fez alguma petição, esse conde, ultimamente? - Não, que me lembre, Excelência. E é um nome que eu nunca tinha ouvido. Conde da Peña Andrada. É tudo muito estranho. No entanto...
 - No entanto, o quê? - Aí estão os seus papéis. Tudo em regra:
  • é um condado concedido pelo imperador, a título pessoal, mas declarado hereditário e de Castela pela majestade de Filipe II, que além disso concede aos titulares patentes de corso contra ingleses e holandeses, com a condição de que mantenham uma esquadra de seis navios e entreguem à coroa um quinto das presas.
As contas estão em regra, senhor, e pagaram aos reis de Espanha um bom punhado de moedas e outros bens. Há também... - O chanceler-mor fez uma pausa e fitou o Valido. - ... Há também um pleito com a casa de Andrade, por questão de limites de senhorio. O que se disputa é o vale de Valdoviño. A causa está na Real Chancelaria de Valladolid. - E onde fica esse tal Valdoviño ? - Tem que ser na Galiza senhor. Terra de bruxas, onde nade é claro. A gente boa que por lá há, ou vem para Madrid, como os de Lemos, ou fica em Salamanca, como os de Monterrey. Aqui citam-se aldeias e cidades de que ninguém faz ideia: Cedeira, Santa Marta de Ortigueira... Qualquer coisa como Caraño ou Cariño, não é muito claro. São os portos autorizados para essa esquadra...
O Valido olhou para o volumoso processo, sopesou-o». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da E. Caminho/JDACT