«O rei olhava em frente, como se o envolvesse o infinito. Tinha
cara de pasmado. Que fitais com tanta atenção, Senhor? O corpo de Marfisa.
Não posso ver outra coisa. O moço de câmara que emprestara o meio ducado ao rei
entrou no gabinete pela porta dos confidentes e ficou quieto, humilde, mas
fitando de soslaio o Valido (espécie de
primeiro-ministro característico dos reinados dos monarcas espanhóis durante o
século XVII). - Passa-se alguma coisa, Cosme? - Vossa Excelência que junte
o fio à meada:
- Sua Majestade não dormiu no palácio, tem a cama por desfazer e não aparece em parte nenhuma. Ontem, quando me despedi dele, pediu-me meio ducado.
- E que deduzes tu, Cosme? - Que
o rei foi para a farra, Excelência; meio ducado é o que pagam os reis às suas p….,
conforme sempre ouvi dizer. - Há coisas, Cosme, que não devem ouvir-se nunca. -
Peço-lhe perdão, Excelência, mas, graças a que não sou surdo, Vossa Excelência
recebe-me em segredo. - Tens razão, Cosme. E saiu sozinho, o rei? - Ao certo,
ao certo, não sei. Mas, quando eu o deixei, estava com o conde da Peña Andrada.
O Valido ficou em silêncio, a olhar para o friso da parede fronteira
que confinava com o artesoado. Uma loucura de esfinges e de dragões
multicéfalos de muito boa factura.
- O conde da Peña Andrada. E
quem é esse? - Não saberia explicar-lho, senhor, a não ser que é um cavalheiro
jovem, de muito bom aspecto, que o rei trata com confiança. - Retira-te, Cosme.
Obrigado.
Cosme inclinou-se e saiu pela mesma porta por onde tinha entrado. Nessa
altura, o Valido fez soar a campainha, de som fino, mas penetrante. Entrou um
pajem e ficou mudo junto da porta. O Valido escreveu umas letras num papel. -
Leva isto ao chanceler-mor e que traga imediatamente o que lhe peço. Saiu o
pajem, o Valido murmurou: - Com que então às p…., sem eu saber.
A cara do Valido não parecia muito satisfeita, nem muito tranquilo o
seu olhar. O chanceler-mor não tardou muito a chegar. - Aqui está o que pede,
Excelência. - Custou-te muito encontrá-lo? - Nada, Excelência. Estava em cima
da minha mesa. - E por que é que lá estava? Fez alguma petição, esse conde,
ultimamente? - Não, que me lembre, Excelência. E é um nome que eu nunca tinha
ouvido. Conde da Peña Andrada. É tudo muito estranho. No entanto...
- No entanto, o quê? - Aí estão
os seus papéis. Tudo em regra:
- é um condado concedido pelo imperador, a título pessoal, mas declarado hereditário e de Castela pela majestade de Filipe II, que além disso concede aos titulares patentes de corso contra ingleses e holandeses, com a condição de que mantenham uma esquadra de seis navios e entreguem à coroa um quinto das presas.
As contas estão em regra, senhor, e pagaram aos reis de Espanha um bom
punhado de moedas e outros bens. Há também... - O chanceler-mor fez uma pausa e
fitou o Valido. - ... Há também um pleito com a casa de Andrade, por questão de
limites de senhorio. O que se disputa é o vale de Valdoviño. A causa está na
Real Chancelaria de Valladolid. - E onde fica esse tal Valdoviño ? - Tem que
ser na Galiza senhor. Terra de bruxas, onde nade é claro. A gente boa que por
lá há, ou vem para Madrid, como os de Lemos, ou fica em Salamanca, como os de
Monterrey. Aqui citam-se aldeias e cidades de que ninguém faz ideia: Cedeira,
Santa Marta de Ortigueira... Qualquer coisa como Caraño ou Cariño, não é muito
claro. São os portos autorizados para essa esquadra...
O Valido olhou para o volumoso processo, sopesou-o». In
Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado
(Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992,
ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da E. Caminho/JDACT