«A noite quente encheu-se de deliciosos e crepitantes odores, odores
que impregnavam o ar com um irresistível perfume, e a uma centena de passos era
possível adivinhar, no interior da casa, a presença de frigideiras ardentes, de
panelas cheias que exalavam um grave, intenso, luxurioso aroma de alhos refogados
em azeite, de carnes engorduradas, de molhos carregados de pimentos que
pareciam arder como brasas no borralho.
Perto dali, quase invisível no meio da escuridão, um pequeno grupo de
homens caminhava em direcção à casa, atraído pela apetitosa fragrância vinda
das cozinhas. Ali estava Erixímaco,
homem de baixa estatura e grande obesidade, médico de profissão, que vinha a
coxear apoiado numa bengala que ameaçava quebrar-se a qualquer momento. Ali
estava Pausânias, ainda mais baixo,
ainda mais obeso, arrastando os pés com indigna frouxidão e entoando um refrão
impreciso que soava a escândalo. Ali estava o poeta Aristófanes, autor de algumas comédias que faziam rir os
atenienses, ele próprio a rir dos cantos desafinados de Pausânias. E depois, uns passos mais atrás, encerrando o alegre grupo
de convidados do banquete, o jovem Fedro
e o anão Aristodemo, que já se vinham
a lambuzar perante a anunciada comezaina.
Ainda na escuridão, embriagados pelo concerto de odores, os cinco
homens atravessaram a desembocadura da rua e adivinharam, agora sim, o oscilante
resplendor de uma lamparina de azeite que ardia junto à porta de casa. Foi o
gordo Pausânias que se adiantou uns
passos e bateu animadamente com a palma da mão, e logo, depois de ser recebido por
um escravo, fez-se anunciar junto dos outros convidados ao dono da casa, o
poeta Àgaton, que oferecia aquele
majestoso banquete para celebrar o recente sucesso de mais uma das suas
tragédias.
Dentro havia música de liras e flautas, e respirava-se um ar sobrecarregado
de odores excitantes, de odores cálidos, de odores que causavam picadas no nariz
A luz das tochas reflectia-se nas paredes e um grupo de serventes formigava de
um lado para o outro levando copos, garrafas, bandejas e travessas repletas de
manjares. Os convidados foram entrando um a um, rindo e conversando,
surpreendidos com a ostentação de adornos que animavam a sala, cujas paredes
transbordavam de flores e grinaldas.
Uma expressão de estranheza surgiu no rosto de Ágaton ao receber o último dos seus convidados. - Folgo ter-te em
minha casa, Aristodemo, saudou com
infinita cordialidade. - Mas pensei que vinhas com Sócrates.
- E vinha - respondeu o
convidado encolhendo os ombros – juro pelos deuses que há pouco vinha atrás de
mim. - E o que aconteceu então? - Oh, já sabes como ele é... - murmurou. E
logo, perante a insistente reclamação de Ágaton,
recordou que um momento antes se encontrara com Sócrates nos arredores do
Pórtico, sob as tochas que iluminavam os muros; ambos marcaram encontro ali
para irem juntos a casa de Ágaton;
começaram a caminhar quando de repente, no meio da infame treva que envolvia as
ruas de Atenas, Aristodemo descobriu
que caminhava sozinho e sem ninguém a seu lado. Olhou instintivamente para
trás, tacteou o ar e levantou a voz chamando várias vezes pelo amigo, mas o
abismo da noite apenas lhe devolveu um silêncio aterrador. O que acontecera a Sócrates?
Ter-se-ia enganado no caminho em algum momento? Caminhava tão atrás
que quase não o via? Embora vacilante, temendo a iminência de uma tragédia,
Aristodemo recuou uns passos no meio
da escuridão, voltou a fazer mesmo o caminho em busca do seu velho companheiro
e durante um bom bocado os seus olhos pequenos furaram em vão a espessura nocturna.
Mas um momento depois, não sem um certo espanto, descobriu a silhueta imóvel do
velho, sentado na ponta de uma pedra, absorto, com o olhar fixo na abóbada celeste
ou porventura no brilho deslumbrante de alguma constelação. Sócrates
permanecia ali, quieto, cofiando a barba e profundamente imbuído na escuridão
da noite, quase como uma sombra pensante, da mesma maneira que, uma e outra
vez, na cidade, costumava parar de repente, introspectivo e alheio ao contínuo
bulício das ruas. De repente, Aristodemo
recordou as várias vezes em que o velho costumava parar para espanto dos
outros, que viam logo a estranha expressão que se apoderava do seu rosto, gesto
um tanto tosco e carrancudo, inquietante, e que não era senão a manifestação de
uma necessidade, necessidade de pensar, necessidade de mergulhar nos abismos da
alma humana. De início, Aristodemo
não sabia como reagir; falou e murmurou aos ouvidos de Sócrates, tentou desviá-lo
das suas cogitações e convencê-lo a continuar o caminho mas o velho quase não
respondeu aos seus apelos: ‘Diz a Ágaton
que irei mais tarde’, sussurrou num
fio de voz e, nesse preciso instante, o apoquentado Aristodemo compreendeu que era inútil dissuadir o amigo, que era
inútil perturbar aquele ritual sagrado em que parecia envolvido, porventura
motivado por algum pensamento que lhe sobressaltou o espírito a meio do
caminho. Inclinou-se calmamente mais uma vez para Sócrates, deu-lhe umas
palmadas nas costas e disse: ‘Não te preocupes, eu aviso-o’, e depois
empreendeu o caminho novamente em direcção a casa de Ágaton, enquanto Sócrates ficava ali, sentado,
imóvel, em atitude contemplativa, a ver como o pequeno Aristodemo era tragado pela imensidão da noite». In Miguel Betanzos,
Sócrates, O Sábio Imortal, Editorial Sudamericana, 2005, Ésquilo, Lisboa, 2006,
ISBN 972-8605-93-5.
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