sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O Sábio Imortal. Sócrates. Miguel Betanzos. «Mas um momento depois, não sem um certo espanto, descobriu a silhueta imóvel do velho, sentado na ponta de uma pedra, absorto, com o olhar fixo na abóbada celeste ou porventura no brilho deslumbrante de alguma constelação»

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«A noite quente encheu-se de deliciosos e crepitantes odores, odores que impregnavam o ar com um irresistível perfume, e a uma centena de passos era possível adivinhar, no interior da casa, a presença de frigideiras ardentes, de panelas cheias que exalavam um grave, intenso, luxurioso aroma de alhos refogados em azeite, de carnes engorduradas, de molhos carregados de pimentos que pareciam arder como brasas no borralho.
Perto dali, quase invisível no meio da escuridão, um pequeno grupo de homens caminhava em direcção à casa, atraído pela apetitosa fragrância vinda das cozinhas. Ali estava Erixímaco, homem de baixa estatura e grande obesidade, médico de profissão, que vinha a coxear apoiado numa bengala que ameaçava quebrar-se a qualquer momento. Ali estava Pausânias, ainda mais baixo, ainda mais obeso, arrastando os pés com indigna frouxidão e entoando um refrão impreciso que soava a escândalo. Ali estava o poeta Aristófanes, autor de algumas comédias que faziam rir os atenienses, ele próprio a rir dos cantos desafinados de Pausânias. E depois, uns passos mais atrás, encerrando o alegre grupo de convidados do banquete, o jovem Fedro e o anão Aristodemo, que já se vinham a lambuzar perante a anunciada comezaina.
Ainda na escuridão, embriagados pelo concerto de odores, os cinco homens atravessaram a desembocadura da rua e adivinharam, agora sim, o oscilante resplendor de uma lamparina de azeite que ardia junto à porta de casa. Foi o gordo Pausânias que se adiantou uns passos e bateu animadamente com a palma da mão, e logo, depois de ser recebido por um escravo, fez-se anunciar junto dos outros convidados ao dono da casa, o poeta Àgaton, que oferecia aquele majestoso banquete para celebrar o recente sucesso de mais uma das suas tragédias.
Dentro havia música de liras e flautas, e respirava-se um ar sobrecarregado de odores excitantes, de odores cálidos, de odores que causavam picadas no nariz A luz das tochas reflectia-se nas paredes e um grupo de serventes formigava de um lado para o outro levando copos, garrafas, bandejas e travessas repletas de manjares. Os convidados foram entrando um a um, rindo e conversando, surpreendidos com a ostentação de adornos que animavam a sala, cujas paredes transbordavam de flores e grinaldas.
Uma expressão de estranheza surgiu no rosto de Ágaton ao receber o último dos seus convidados. - Folgo ter-te em minha casa, Aristodemo, saudou com infinita cordialidade. - Mas pensei que vinhas com Sócrates.
 - E vinha - respondeu o convidado encolhendo os ombros – juro pelos deuses que há pouco vinha atrás de mim. - E o que aconteceu então? - Oh, já sabes como ele é... - murmurou. E logo, perante a insistente reclamação de Ágaton, recordou que um momento antes se encontrara com Sócrates nos arredores do Pórtico, sob as tochas que iluminavam os muros; ambos marcaram encontro ali para irem juntos a casa de Ágaton; começaram a caminhar quando de repente, no meio da infame treva que envolvia as ruas de Atenas, Aristodemo descobriu que caminhava sozinho e sem ninguém a seu lado. Olhou instintivamente para trás, tacteou o ar e levantou a voz chamando várias vezes pelo amigo, mas o abismo da noite apenas lhe devolveu um silêncio aterrador. O que acontecera a Sócrates? Ter-se-ia enganado no caminho em algum momento? Caminhava tão atrás que quase não o via? Embora vacilante, temendo a iminência de uma tragédia, Aristodemo recuou uns passos no meio da escuridão, voltou a fazer mesmo o caminho em busca do seu velho companheiro e durante um bom bocado os seus olhos pequenos furaram em vão a espessura nocturna. Mas um momento depois, não sem um certo espanto, descobriu a silhueta imóvel do velho, sentado na ponta de uma pedra, absorto, com o olhar fixo na abóbada celeste ou porventura no brilho deslumbrante de alguma constelação. Sócrates permanecia ali, quieto, cofiando a barba e profundamente imbuído na escuridão da noite, quase como uma sombra pensante, da mesma maneira que, uma e outra vez, na cidade, costumava parar de repente, introspectivo e alheio ao contínuo bulício das ruas. De repente, Aristodemo recordou as várias vezes em que o velho costumava parar para espanto dos outros, que viam logo a estranha expressão que se apoderava do seu rosto, gesto um tanto tosco e carrancudo, inquietante, e que não era senão a manifestação de uma necessidade, necessidade de pensar, necessidade de mergulhar nos abismos da alma humana. De início, Aristodemo não sabia como reagir; falou e murmurou aos ouvidos de Sócrates, tentou desviá-lo das suas cogitações e convencê-lo a continuar o caminho mas o velho quase não respondeu aos seus apelos: ‘Diz a Ágaton que irei mais tarde’,  sussurrou num fio de voz e, nesse preciso instante, o apoquentado Aristodemo compreendeu que era inútil dissuadir o amigo, que era inútil perturbar aquele ritual sagrado em que parecia envolvido, porventura motivado por algum pensamento que lhe sobressaltou o espírito a meio do caminho. Inclinou-se calmamente mais uma vez para Sócrates, deu-lhe umas palmadas nas costas e disse: ‘Não te preocupes, eu aviso-o’, e depois empreendeu o caminho novamente em direcção a casa de Ágaton, enquanto Sócrates ficava ali, sentado, imóvel, em atitude contemplativa, a ver como o pequeno Aristodemo era tragado pela imensidão da noite». In Miguel Betanzos, Sócrates, O Sábio Imortal, Editorial Sudamericana, 2005, Ésquilo, Lisboa, 2006, ISBN 972-8605-93-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT