sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Digressões e Novellas. Bulhão Pato. «Excitaram-me as perigosas seducções de um amigo e parti para a Madeira. Se ha clima no mundo que faça sentir bem a deliciosa significação do dolce far niente, e por certo aquelle. Ali a ‘magnolia’ cresce ao lado da arvore da Europa que se acurva, no verão, cedendo ao peso dos seus thesouros»

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Nota: De acordo com o original

Sir John. (Mathilde)
«Sempre tive a mania de viajar. Se Deus me houvesse concedido a fortuna de algum lord spleenatico, havia de gastal-a por esse mundo contemplando as ruinas da Grecia, os graciosos despenhadeiros da Suissa,o céo azul-escuro de Contantinopola, os arredondados capiteis de S. Pedro em Roma, as madonas de Raphael, e as encantadas virgens de Millo.
Como não a tenho, resigno-me a passear, de fraque e chapéo redondo, pelas interminaveis calçadas d'esta cidade. Logo, porém, que apparece ensejo favoravel ahi estou eu decidido a caminhar, embora tenha de soffrer as estalagens da nossa terra e de affrontar com as nossas deploraveis estradas.
Quanto mais transpor a barra e sentir-me embalado pelas ondas do oceano! No verão passado tratava-se de uma viagem; era curta, não passavamos dos nossos dominios; mas andavam-se algumas leguas do Atlantico, respirava-se outro ar e via-se outra natureza. Excitaram-me as perigosas seducções de um amigo e parti para a Madeira. Se ha clima no mundo que faça sentir bem a deliciosa significação do dolce far niente, e por certo aquelle.
Em dezembro, quando o norte agudo nos traspassa até a medulla dos ossos em Portugal, ali abre-se pela alta noite uma janella, e passam-se horas inteiras com um bom charuto, aspirando a brisa, que vem fresca e impregnada no perfume das plantas que viçam em continua primavera.
Ali a magnolia cresce ao lado da arvore da Europa que se acurva, no verão, cedendo ao peso dos seus thesouros. Nos primeiros dias do aprasivel outono achava-me na quinta do meu amigo C. de C., a mais rica e mais bella das propriedades de recreio na Madeira.

Dois inglezes vieram tambem passar comnosco uma temporada ali. Eram dois legitimos filhos da Gran-Bretanha. Cabello encarnado, perna longa, olho azul, pescoço esguio e emparedado entre os colleirinhos. Um delles tinha infelizmente sympathisado commigo. Eu estava ainda convalescente de uma longa e penosa doença e o maldito entendeu que devia matar-me usando da sua atroz hygiene.
Uma tarde chegou-se a mim e disse-me, com aquelle pronunciado assento que atraiçoa os filhos da nossa constante e fiel alliada, por mais corretamente que fallem qualquer língua! - Quer vir dar um passeio commigo? Hoje não temos nevoa na serra, deve-lhe fazer bem.
Hesitei primeiro, receiando ter de passar tres ou quatro horas sem abrir a bocca, mas por fim resignei-me para escapar a outro supplicio maior. Montámos a cavallo e partimos juntos. De manhã tinham caido alguns aguaceiros fortes, e succedera-lhes uma fresca brisa do norte que dissipara os vapores levantados da terra, purificando totalmente a atmosphera; de modo, que, fóra do que ordinariamente acontece, as serras, destoucadas de nuvens, recortavam-se no firmamento purissimo.
Trampozemos o portal da quinta, e tomámos sobre a direita. Não sei que haja nada mais agradavel no mundo, do que uma bella tarde de outono, no meio daquella robusta e esplendida natureza. Com a chuva que viera abundante, mas rápida, do terreno e das plantas elevava-se um cheiro forte e acre, que excitava os sentidos e desafogava os pulmões. O inglez olhou duas vezes para mim, sem dizer palavra, mas com gesto de quem se applaudia intimamente.
Eu confesso que estava em plena inspiração; tive tentações de me apear do cavallo e principiar a fazer versos. Retive-me com vergonha do meu amigo. Passavam-me pela imaginação mulheres pálidas, com os braços nús, o seio palpitante, os olhos húmidos de lagrimas, que se derramam à lembrança de prazeres sonhados». In Bulhão Pato, Digressões e Novellas, Artemágica editores, Lisboa, 2004, ISBN 972-8772-16-5.

Cortesia de Artemágicas/JDACT