«Por isso aconselha
Martin Moxa a que não se desquitem como ‘eu vi quitar alguen’. Em qualquer
hipótese, temos, neste serventês, a apologia de dignidade humana. Pero Gómez
Barroso, amigo de Afonso X
e português, compôs outro serventês
a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora:
Ca vej’agora o que nunca
vi
e ouço cousas que nunca
oí.
Que nele haja ou não
objectividade externa, isso parece-nos secundário. É na objectividade interna
desse estado de alma que enraíza a beleza triste deste pranto dos tempos de
agora: Nunca vi andar assim o mundo.
O outro era diferente e é desse que gosta o meu coração! Nada me importa
morrer, pois em nada acho gosto nen
sei amigo de que diga ben. E no fim de cada estrofe, ouve-se o mesmo
protesto de inadaptação à vida, na velhice: ca vej’agora o que nunca vi / e
ouço cousas que nunca oí.
É a angústia dum homem
que ficou sozinho no meio da nova multidão anónima e sem rosto. Esta sátira aos
tempos novos, repetem-na, em prosa, os velhos de todas as gerações, mesmo
simples camponeses. Os amigos morreram e os costumes são outros.
Pero Mafaldo vivia
no século XIII e deve ser contado entre
os trovadores alfonsinos da corte castelhana. Escreveu um serventês a despedir-se da
verdade e poetou contra Pero de Ambroa e a famigerada Balteira. Pero
Mafaldo, ironicamente, declara que irá mudando e mentindo. Toda a gente
faz o mesmo. Falar verdade ao amigo? Não! Quem mente ganha com isso. Juro, pois,
e digo que vou separar-me da verdade e querer mal a quem bem quero. Hei-de prosperar assim, como cavaleiro
que sou. Que hei-de eu fazer, se a verdade para nada me serve nem aumenta a
minha honra? Dai-me um conselho, por caridade. Assim vai a minha vida:
- Se minto ao meu amigo e ao meu senhor, medra o meu proveito e cresço em importância. Sempre a eterna ironia; só medram os malandros e os hipócritas.
Um trovador
desconhecido, mas de elevada categoria técnica e boa inspiração, deixou-nos uma
poesia híbrida, de cantar de amor e de maldizer, contra o mundo e os homens.
Também ele se lembra dos bons velhos tempos: Quem viu o mundo de antigamente e
o vê agora, que há-de querer, senão desterrar-se algures? Mas o mundo
é só um e este é falso. Para onde foram a mesura e a grandeza? Onde pára a verdade?
Quem é leal ao seu
amigo?
Que se fez do amor e do
trovar?
Porque anda a gente
triste e sem cantar?
Ainda assim, vivo por amor
duma senhora a quem muito quero, dos tempos em que amor havia. Fiquem, pois, a
saber porque não me vou algur esterrar, se poderia melhor mund’achar.
E este pensamento vai batendo no final de cada estrofe, como condenação
inapelável dos tempos que já não são nossos. Até aqui, temos a impressão dum cortejo
poético de velhos pranteadores. Contudo, esse cortejo não pára na Idade Média e
salta aos olhos, por exemplo, na França do século XIX, mesmo entre escritores
audazes e criadores. Alfred Musset condenava a geração nova por ser
inculta, sans gaitê et sans amour.
Chateaubriand escrevia, em 1831:
- Tout paraît usé, art, littérature, moeurs, passion; tout se détériore. Lamartine afinava pelo mesmo diapasão e declarava que a França apodrecia numa esterqueira e tudo se desgastava e morria.
Eles não pressentiam,
entre tantos outros escritores, o advento de Baudelaire e do frisson nouveau que depois faria
estremecer Victor Hugo.
Afonso X e os Soldados
Afonso X, o Sábio,
está no centro dum ciclo satírico, onde a poesia é meio de ataque e de defesa, como
os panfletos de hoje em dia. Atacou, atacaram-no. E cada um tinha,
em geral, as suas razões e os seus pontos fracos. Às vezes, nada tão lúcido
como o ódio. Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do
mordomo Rodrigo e dos peões todos
calvos e sen lanças e con grandes çapatões. Os versos do rei valiam mais
do que esta peonagem». In Mário Martins, A Sátira na Literatura
medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura,
volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões,
1986.
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