«Segundo o relato de Mendes Pinto, em cinco horas, uma
força de sessenta mil homens e mais de trezentas embarcações reduziu Liampó a
um monte de ruínas, uma catástrofe que custou as vidas de doze mil cristãos,
dos quais oitocentos portugueses, que morreram nas chamas, a bordo de trinta e
cinco navios e quarenta e dois juncos, perda que foi avaliada em dois milhões e
meio de cruzados de ouro. Vestígios da colónia foram descobertos em Ningpo,
no século passado, as ruínas de um forte em Chin-hae de construção
nitidamente europeia, com as armas nacionais de Portugal gravadas num portão, e
o próprio templo, perto do Portão da Ponte que foi atribuído aos
portugueses de 1528 como a Associação
de Recepção de Estrangeiros. Nos Anais de Ningpo está
registado que no vigésimo sexto ano de Kia Tsing (1548) os japoneses
atacaram Ningpo e que no ano anterior tinham sido proibidas as relações
com o estrangeiro, sob pena de decapitação, pelo governador provincial Chu
Huan, que, por isso, se tornou tão impopular e sujeito a tantos ataques que foi
destituído de todos os cargos. Por estranho que seja, nos Anais não há qualquer
menção à catástrofe de Liampó, como foi narrada por Mendes Pinto.
Não obstante, à falta de uma versão autêntica no que se
refere à história colonial portuguesa, o relato de Mendes Pinto sobre a
catástrofe, estereótipo de quase todas as obras históricas sobre as relações da
China com estrangeiros, fica como a versão não-desmentida da sorte misteriosa
que teve a primeira colónia europeia na China, sem ter em conta o facto de, em 1543, uma frota pirata de trezentas embarcações
ter, também, deixado Xangai em ruínas. Mendes Pinto, contudo, nada diz
sobre os ataques japoneses daquela época, ataques cujas narrativas teriam tido
menor impacte na China não fosse ter sido ele e os seus amigos quem, em Tanegashima,
iniciou os japoneses no uso de armas de fogo, ao que se seguiu a sua
manufactura, com febril actividade e maravilhosa arte. Não admira que, em Xangai,
um cronista nativo atribua o sucesso japonês aos seus auxiliares estrangeiros, escravos
negros e diabos brancos ao seu serviço, muito destros no uso de armas de
fogo, espadas e lanças; nem que outro cronista atribua a derrota chinesa ao descontentamento
provocado pela incapacidade do magistrado da cidade de fornecer, aos bravos de Kiangsi,
cobras e cães para a sua ração habitual. Donde se infere que o pensamento ia
primeiro para a comida e só depois, então, para as aflições da China.
Depois da destruição de Liampó os portugueses
asseguraram uma base em Chicheu, perto de Amoy, por meio de pesados
subornos. Também aí a mesma horrível sorte os alcançou, dois anos mais tarde
segundo Mendes Pinto, em consequência de uma disputa pelos bens de um
arménio morto. Um administrador oficial, Aires Botelho Sousa, com fama
de homem sem princípios e ganancioso, tomou como fazenda parte dos bens e
algumas mercadorias que dois comerciantes chineses diziam suas e que, como não
lhes fossem restituídas, se queixaram aos mandarins, que imediatamente
proibiram as relações dos nativos com os portugueses, racionando o fornecimento
de provisões. Levados pela fome, passaram
a região a pente fino.
Isto terminou em escaramuças que levantaram o distrito
inteiro contra eles. Enquanto um exército acabava rapidamente com os
portugueses uma frota deitou fogo aos seus barcos; e de quinhentos portugueses
apenas cerca de trinta escaparam a uma morte atroz. Esta foi a horrível sorte
das primeiras colonizações europeias na China, varridas da face da Terra pelas acções ilegítimas de alguns,
como narrou Mendes Pinto e envolvendo a terrível expiação centenas de homens
honestos e suas famílias. Com estas horríveis hecatombes a China queria
evidentemente impedir os portugueses de frequentarem as suas costas inóspitas.
No entanto nada intimidou estes esforçados navegadores.
Os proscritos dirigiam-se agora para Sanchuan. Mas, conscientes de uma instabilidade que era real, contentavam-se com visitas relâmpago. Alguns faziam tendas com as velas e os remos, outros levantavam barracas de esteiras que eram desmanchadas quando, realizado o comércio proibido, deixavam a ilha: eis quanto a comprada tolerância dos mandarins permitia. Aventurar-se até Cantão representava prisão perpétua, torturas e morte. Por precária e desencorajante que fosse a situação o intrépido missionário S. Francisco tão merecidamente chamado o Apóstolo do Oriente convenceu Afonso de Noronha, vice-rei de Goa, e enviar uma embaixada à China com o propósito de engrandecer a causa da cristandade e obter a libertação dos muitos portugueses aí prisioneiros. Foi escolhido como enviado um grande admirador e amigo do zeloso missionário Diogo Pereira, um mercador rico a expensas de quem eram os presentes levados para a corte de Pequim. Mas a caminho da China, em 1552, a missão teve um desaire:
- Em Malaca, o governador, Álvaro da Gama, que segundo se dizia, invejava Diogo Pereira, deteve-o sob o pretexto de que, como filho de Vasco da Gama, era ele próprio a personalidade competente para o importante cargo de enviado à China e não quem tinha sido um simples servo de um nobre até há pouco. Para reforçar o impedimento, e com a justificação de que o navio era necessário à defesa do local, tiraram o leme ao barco de Diogo Pereira. S. Francisco excomungou Álvaro e sacudiu mesmo dos seus sapatos o pó de Malaca quando sem o enviado e os seus presentes, embarcou.
Doente angustiado, o destemido e abnegado aristocrata
espanhol chegou a Sanchuan apenas para terminar a sua extraordinária
carreira naquela solidão, enquanto esperava reunir-se com uma embaixada
tributária do Sião». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao,
1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente,
Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.
Cortesia da F. Oriente/JDACT