(Continuação)
«É esta
a contribuição que posso deixar ao coleccionador que amanhã surja a enfeixar as
composições poéticas do ciclo inicial do Poeta, a sua primeira colheita de frutos de Beleza, de Graça e de
Sonho, doirados e saborosos para quem os vê e lhes saboreia apenas o inebriante
sumo da polpa, nem sequer adivinhando quanta dor dilacerou, triturou, rasgou
primeiro as entranhas maternais do espírito criador que atirou para a luz
solar, e em forma tão generosamente comunicativa, essa colheita magnífica. Pequena
contribuição, sim. Mas,
reconhecendo a sua modéstia, não a considero, todavia, importuna. Faço transcrição
fiel, respeitando rúbricas e ortografia:
O Eclipse
(24 de
Setembro de 1884)
N'aquella
tarde eu contemplava, ancioso,
a lua
das marés:
ia ver
um phenomeno curioso,
pela
primeira vez.
Desde
as sete horas que eu me achava prompto,
pois vinha
no jornal
que se
daria, ás sete e meia em ponto,
o eclypse
total.
Na praia,
Miss! áquella hora havia
enorme
sensação:
enthusiasmada,
a gente discutia
com o
óculo na mão.
E
como, é certo, com a vista núa,
tam fraca
e tam subtil,
tu não
podias observar a lua,
Astrónomo
gentil.
Um moço
poeta, rouxinol das praias,
um oculo
offereceu
a ti,
meu doce Ptolomeu de saias,
Geometra
do céu!
Assestaste-o,
mas nada: uma imprevista
mancha
aos teus olhos sáe,
pois que
estava graduado pela vista
do teu
velhinho pae.
Da praia,
entanto, na deserta areia,
caia
o luar a flux,
e nos
céus fulgurava a lua cheia,
cheia
de tanta luz.
Que tu,
imaginando ver da aurora,
o lúcido
arrebol,
disseste
: ‘Estou capaz de abrir, agora,
O meu
chapéu de sol… ‘
Única
phrase que tombou, creança,
do róseo
lábio teu,
porque
depois, - que súbita mudança!
Tornou-se
escuro o ceu…
E a lua,
a pouco e pouco desmaiando,
sumia-se
no ar,
como se
um monstro a fosse devorando,
na sombra… devagar…
Á luz
da lua succedeu a treva,
treva
de horror sem fim,
côr dos
teus olhos, deliciosa Eva!
meu pallido
jasmim!
E ao ver-me
só nas trevas, de repente,
clamei
por ti, clamei…
E interrogando
a multidão, a gente,
em vão!
Não te encontrei!
Ah, bem
dizem as lendas, os adágios,
e as bruxas
do Sabbat,
que os
eclypses da lua são presagios,
sinaes
de coiza má!
Por isso
o Mal com sua garra adunca
me separou
de ti,
pois
que tu nunca mais me viste, nunca!
E eu nunca
mais te vi.
E,
hoje, nas trevas sepulchraes e calmas,
eu vivo,
por meu mal:
é que
também se deu de nossas almas
o eclypse
total!
Do
livro, no prélo: ‘Alicerces’. António Nobre.
Tem esta
poesia a nota interessante, por nova, de denunciar o título dum livro Alicerces, que
não consta do Plano das obras de António Nobre, publicado pelo visconde de Villa-Moura
no seu notável livro António Nobre (seu génio e sua obra)
o único trabalho de vulto inteligentemente urdido, que até a data alguém deu a lume
sobre a figura do Poeta, porque não se detêm nele a catalogar poesias, na ânsia
comezinha e burocrática de lhe abrir assento de baptismo nesta ou naquela escola
literária, mas sim, armada a sua observação com a melhor e a mais subtil das lupas,
que o seu próprio temperamento de Artista lhe forneceu - na quase plena identidade
de duas maneiras de ser psíquicas, a de si mesmo e a de Anto, desceu ao íntimo deste,
a sondar-lhe fibra por fibra a alma enorme e ondeada de crises supra-terrenas e
infernais. Com exactidão, obstinou-se em descobrir primeiro o génio do Poeta e em
demonstrar depois que a sua obra ali embebe profundamente as raízes, seguindo assim
processo contrário ao usado pelo vulgo dos tratadores de coisas literárias, com
óculos críticos encavalitados no nariz, foscos de erudição, a atestar-lhes à
légua- a miopia, isto é, a impotência para lobrigarem algo além do papel e dos caracteres
nele exarados.
A poesia
que segue não a datou o Poeta, nem sei ao certo a data do periódico que a inseriu,
pois o fragmento que possuo abrange apenas os versos. Contudo, à margem, alguém
escreveu a lápis 1888, que julgo indicar o ano em que saiu o impresso». In
César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa,
PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.
continua
Cortesia
de Livraria Central Editores/JDACT