terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O Bebedor Nocturno. Herberto Helder. «Toda a vida é achar-se dentro da “circunstância” ou mundo. Porque este é o sentido originário da ideia (mundo). Mundo é o repertório das nossas possibilidades vitais. Não é, pois, algo à parte e alheio à nossa vida, mas que é a sua autêntica periferia»

jdact e cortesia de wikipedia

Oração mágica finlandesa
Pára, sangue, de correr,
de ressaltar aos borbotões,
de me inundar como torrente,
de me brotar sobre o flanco.
Como contra uma parede,
imóvel como uma sebe,
lírio marinho direito
como espadana na espuma,
como pedra no talude
e o recife na corrente.
Sangue, sangue, se o desejo
te faz correr com tal força,
circula dentro da carne,
abraça-te aos ossos vivos.
Belo, belo que é correr
na obscura pele compacta,
sussurrando nas artérias,
murmurando contra os ossos.
Pára, sangue, de correr
sobre a fria terra morta.
Não corras, leite, no chão,
sangue inocente no vale,
beleza humana entre a erva,
oiro de heróis na colina.
Desce fundo ao coração,
bate surdo nos pulmões,
desce, desce fundamente
aos órgãos vivos do corpo.
Não és rio que se escoe,
nem calmo lago parado,
nem fonte que brote assim,
nem barca velha com rombos.

Canção escocesa
Porque escorre o sangue pela tua espada,
Eduardo, Eduardo?
Porque escorre o sangue pela tua espada,
e porque estás tão triste, oh?,
Oh, porque matei o meu melhor falcão,
minha mãe, minha mãe,
oh, porque matei o meu melhor falcão,
e no mundo não há outro nenhum assim, oh!

O sangue do teu falcão não era assim tão vermelho,
Eduardo, Eduardo,
o sangue do teu falcão não era assim tão vermelho
porque me mentes, oh?
Oh, porque matei o meu corcel ruão,
minha mãe, minha mãe,
oh, porque matei o meu corcel ruão,
que era delgado e tão ágil, oh!

Esse corcel era velho e possuis outros corcéis,
Eduardo, Eduardo,
esse corcel era velho e possuis outros corcéis,
porque me mentes, oh?
Oh, foi meu pai quem eu matei,
minha mãe, minha mãe,
oh, foi meu pai quem eu matei,
que a maldição me cubra para sempre, oh!

Que penitência farás pelo teu crime,
Eduardo, Eduardo?
Que penitência farás pelo teu crime,
dize-me, ó filho, oh?
Embarcarei para longe, bem longe,
minha mãe, minha mãe,
embarcarei para longe, bem longe,
irei por sobre as águas do mar, oh!

E os teus castelos e torres, que é que deles farás,
Eduardo, Eduardo?
E os teus castelos e torres, que é que deles farás,
que eram tão altos, tão belos, oh?
Que fiquem de pé, e que tombem depois,
minha mãe, minha mãe,
que fiquem de pé, e que tombem depois,
e não reste nenhum sinal no mundo, oh!

Que deixas à tua mulher, e que deixas aos teus filhos,
Eduardo, Eduardo?
Que deixas tua à mulher, e que deixas aos teus filhos,
se te aventuras ao mar, oh?
Deixo-lhes a terra toda para que nela mendiguem,
minha mãe, minha mãe,
deixo-lhes a terra toda para que nela mendiguem,
que nunca mais os verei, oh!

E que deixas tu à tua mãe extremosa,
Eduardo, Eduardo?
E que deixas tu à tua mãe extremosa,
que fica sem ti, oh?
A maldição do inferno, eis agora o que te deixo,
minha mãe, minha mãe,
a maldição do inferno, eis agora o que te deixo,
que o meu crime é o teu, oh!

Poemas de Herberto Helder, in “O Bebedor Nocturno

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