Romance em carne viva
Ninguém ousou olhá-lo de frente a frente bem nos olhos,
quando o Zé Tocha saiu da sombra
e disse ter os dez filhos com fome.
Vinte anos pagou, pagou, pagou…
P’ra a Caixa, p’ra a doença, p’ra a reforma…
E nas andanças da vida
Zé Tocha está com baixa por doença
e tem dez filhos com fome…
Olhos nos olhos
ninguém ousou mais olhá-lo;
nem o contínuo, nem o senhor do guichet,
nem os náufragos
que no corredor da Assistência
esperavam, esperavam, esperavam,
de mão estendida…
Trabalhadores da vida
como mendigos
ou como párias.
E toda a luz se consome
e morrem todas as árias
pois como aguentar nos olhos
e olhar louco de um homem
que trabalhou toda a vida
e tem dez filhos com fome!
Antevisão
A dor não existe,
a tristeza não existe,
a lassidão não existe…
Existes tu, Homem,
como escultor da vida.
E depois,
quando modelares por tuas mãos
a estrutura nova da vida,
das trevas nascerão sóis
e o teu coração como uma pomba liberta,
voará como uma pomba liberta!
Homem, tens na tua frente a estrada aberta
à espera dos teus passos…
Por que hesitas?
Poemas de Lília da Fonseca,
in “Poemas da hora presente”
JDACT