terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Poesia e Metromania. Inscrições Setecentistas, 1750-1820. Fernando Matos Oliveira. «A teoria a que Compagnon se refere não é a teoria que hoje se espraia sobre a mesa dos estudos de teor culturalista. A teoria a que se refere é sobretudo relativa à coisa literária ou, quando muito, a uma epistemologia da literatura passível de conversão analítica e descritiva»

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Literatura, teoria e cultura
Examinatio: a teoria como programa
«No campo dos estudos literários, considerando o amplexo temporal que medeia entre o paradigma filológico-literário e o paradigma culturalista, as décadas de sessenta e de setenta do século passado surgem-nos marcadas pela dramatização da teoria, o agente provocador nas negociações críticas mais recentes entre a literatura e a cultura. Colocando a questão em termos narrativos, enquanto objecto de estudo, a literatura começou por ser alvo de um investimento crítico no seio de uma comunidade relativamente consensual quanto à natureza e ao valor do literário. A constituição do moderno conceito de literatura acompanhou a sua inscrição simultânea num trajecto estético relacionado com a reconceptualização iluminista dos saberes, em contiguidade com a autonomização do literário enquanto pulsão contrafactual, e ainda num trajecto sócio-cultural progressivamente identificado com a expansão de classes burguesas, justamente até à consumação do Estado-Nação. No âmbito da construção e publicitação das nacionalidades modernas, a literatura constitui um repositório patrimonial e linguístico que credita simbolicamente a sociedade (Gesellschaft) liberal-burguesa com um capital cultural que a identifica e une enquanto comunidade (Gemeinschaft).

NOTA: Neste contexto, a Crítica da Faculdade do Juízo de Kant constitui uma das tentativas fundadoras para resolver, por via da experiência estética, a separação entre o conhecimento racional e o universo contingente das sensações. Mas a dificuldade de uma reconciliação no território do belo seria enfatizada logo no próprio texto kantiano, pois a especulação em torno do carácter inapreensível do sublime acaba por correr paralelo à constituição histórica de um discurso potencialmente infinito sobre a própria literatura, mais ainda quando as poéticas do génio radicalizam o processo moderno de subjectivação e autonomização do estético.

No contexto desejavelmente orgânico da nação, tanto o teatro, a literatura, como as demais expressões artísticas encontram nesse território simbólico uma legitimação suficiente, adoptada pelos principais institutos de reprodução cultural, como a escola e as universidades. A discussão sobre o não-lugar da literatura na contemporaneidade aciona, pois, um quadro narrativo que solicita simultaneamente a revisão do conceito de comunidade, a revisão do papel hegemónico do literário na criação de universos contingentes e a revisão do próprio conceito de literatura. A depreciação histórica do literário supõe, portanto, uma crise nas condições que anteriormente regulavam a sua existência, incluindo a tradição filológica que havia sustentado a sua ascensão crítica e patrimonial no universo progressivamente diferenciado e instrumentalizado das letras.
A destabilização crítica deste paradigma ocorre, no âmbito estrito dos estudos literários, com a ascensão da teoria, um metadiscurso que viria a pairar como um espectro sobre os departamentos tradicionalmente dedicados ao estudo da literatura. A teoria surge na paisagem académica como um discurso fortemente especulativo e auto-reflexivo, com uma enorme capacidade capaz de fazer migrar o seu trabalho conceptual em múltiplas direcções. Até então, a filologia determinara as fronteiras da História Literária e os limites do exercício escolar ou profissional da crítica, manifestamente comprometida com as impressões do leitor. A teoria infiltra-se nas práticas de leitura e comentário institucionalizadas no meio literário com o efeito demoníaco das matérias perturbadoras. Quando a instituição literária, formatada por quase dois séculos de trabalho predominantemente filológico, vê ameaçada uma agenda construída sobre o terreno nacionalizado e pacificado das Humanidades, a teoria tornou-se o alvo óbvio de resistência, mais precisamente, de resistência à dissolução de certa ideia de literatura e de estudos literários. A própria dimensão especulativa que caracteriza o investimento teórico constituía um obstáculo suplementar à sua integração em sede escolar, um contexto mais receptivo a versões estabilizadas, instrumentais ou propriamente identitárias do corpus literário. O que na altura motivou a reacção da academia, tanto em contexto americano como europeu, foi precisamente o carácter reflexivo e sistemático que fazia o procedimento teórico divergir das abordagens descritivistas e expressivistas tradicionalmente associadas ao contacto escolar com o texto. O apogeu teórico vivido nos anos sessenta e setenta constitui hoje um percurso que é já passível de reconstituição histórica, não sem aquela dose de nostalgia que Antoine Compagnon atribui a quem tenha assistido ao fim do êxtase teórico ou, o que vai dar ao mesmo, à domesticação escolar do contra-discurso proposto originalmente pela teoria:
  • Sous diverses appellations, nouvelle critique, poétique, structuralisme, sémiologie, narratologie, elle brillait de tous ses feux. Quiconque a vécu ces années féeriques ne peut s’en souvenir qu’avec nostalgie. Un courant puissant nous emportait tous. En ce temps-là, l’image de l’étude littéraire, soutenue par la théorie, était séduisante, persuasive, triomphante. Ce n’est plus exactement le cas. La théorie s’est institutionnalisée, elle s’est transformée en méthode, elle est devenue une petite technique pédagogique souvent aussi desséchante que l’explication de texte à laquelle elle s’en prenait alors avec verve. In Compagnon, 1998.
A teoria a que Compagnon se refere não é, contudo, exactamente a teoria que hoje se espraia sobre a mesa dos estudos de teor culturalista. A teoria a que se refere é sobretudo relativa à coisa literária ou, quando muito, a uma epistemologia da literatura passível de conversão analítica e descritiva. A história desta teoria foi já contada uma e outra vez; dispomos actualmente de um número considerável de estudos, de monografias e de antologias. Foi com base nesta tradição teórica que se constituíram quadros descritivos com largo impacto na formação de gerações de leitores, orientados sobretudo para a compreensão da especificidade do literário. A teoria procurava, em primeiro lugar, responder ainda à pergunta Qu’est-ce que la littératureIn Fernando Matos Oliveira, Poesia e Metromania, Inscrições Setecentistas, 1750-1820, Dissertação de Doutoramento em Letras, na área de Línguas e Literaturas Modernas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, 2008.

Cortesia da Universidade de Coimbra/JDACT