Literatura, teoria e cultura
Examinatio: a teoria como programa
«No campo dos estudos
literários, considerando o amplexo temporal que medeia entre o paradigma
filológico-literário e o paradigma culturalista, as décadas de sessenta e de
setenta do século passado surgem-nos marcadas pela dramatização da teoria, o agente
provocador nas negociações críticas mais recentes entre a literatura e a
cultura. Colocando a questão em termos narrativos, enquanto objecto de estudo, a literatura começou por ser alvo de um
investimento crítico no seio de uma comunidade relativamente consensual quanto
à natureza e ao valor do literário. A constituição do moderno conceito de
literatura acompanhou a sua inscrição simultânea num trajecto estético
relacionado com a reconceptualização iluminista dos saberes, em
contiguidade com a autonomização do literário enquanto pulsão contrafactual, e
ainda num trajecto sócio-cultural progressivamente identificado com a expansão
de classes burguesas, justamente até à consumação do Estado-Nação. No âmbito da
construção e publicitação das nacionalidades modernas, a literatura constitui
um repositório patrimonial e linguístico que credita simbolicamente a sociedade
(Gesellschaft) liberal-burguesa com um capital cultural que a identifica e une
enquanto comunidade (Gemeinschaft).
NOTA: Neste contexto, a Crítica da Faculdade do Juízo
de Kant constitui uma das tentativas fundadoras para resolver, por via da
experiência estética, a separação entre o conhecimento racional e o universo
contingente das sensações. Mas a dificuldade de uma reconciliação no território
do belo seria enfatizada logo no próprio texto kantiano, pois a especulação em
torno do carácter inapreensível do sublime
acaba por correr paralelo à constituição histórica de um discurso potencialmente infinito sobre a própria
literatura, mais ainda quando as poéticas do génio radicalizam o processo moderno de subjectivação
e autonomização do estético.
No contexto desejavelmente
orgânico da nação, tanto o teatro, a literatura, como as demais expressões
artísticas encontram nesse território simbólico uma legitimação suficiente, adoptada
pelos principais institutos de reprodução cultural, como a escola e as universidades.
A discussão sobre o não-lugar da
literatura na contemporaneidade aciona, pois, um quadro narrativo que
solicita simultaneamente a revisão do conceito de comunidade, a revisão do
papel hegemónico do literário na criação de universos contingentes e a revisão
do próprio conceito de literatura. A depreciação histórica do literário supõe,
portanto, uma crise nas condições que anteriormente regulavam a sua existência,
incluindo a tradição filológica que havia sustentado a sua ascensão
crítica e patrimonial no universo progressivamente diferenciado e
instrumentalizado das letras.
A destabilização crítica
deste paradigma ocorre, no âmbito estrito dos estudos literários, com a ascensão
da teoria, um metadiscurso que viria a pairar como um espectro sobre os
departamentos tradicionalmente dedicados ao estudo da literatura. A teoria surge na paisagem académica como
um discurso fortemente especulativo e auto-reflexivo, com uma enorme capacidade
capaz de fazer migrar o seu trabalho conceptual em múltiplas direcções. Até
então, a filologia determinara as fronteiras da História Literária e os
limites do exercício escolar ou profissional da crítica, manifestamente
comprometida com as impressões do leitor. A teoria infiltra-se nas práticas de
leitura e comentário institucionalizadas no meio literário com o efeito demoníaco
das matérias perturbadoras. Quando a instituição literária, formatada por quase
dois séculos de trabalho predominantemente filológico, vê ameaçada uma agenda
construída sobre o terreno nacionalizado e pacificado das Humanidades, a teoria
tornou-se o alvo óbvio de resistência, mais precisamente, de resistência à
dissolução de certa ideia de literatura e de estudos literários. A própria dimensão
especulativa que caracteriza o investimento teórico constituía um obstáculo suplementar
à sua integração em sede escolar, um contexto mais receptivo a versões estabilizadas,
instrumentais ou propriamente identitárias do corpus literário. O que na altura motivou a reacção
da academia, tanto em contexto americano como europeu, foi precisamente o
carácter reflexivo e sistemático que fazia o procedimento teórico divergir das
abordagens descritivistas e expressivistas tradicionalmente associadas ao contacto
escolar com o texto. O apogeu teórico vivido nos anos sessenta e setenta constitui
hoje um percurso que é já passível de reconstituição histórica, não sem aquela dose
de nostalgia que Antoine Compagnon atribui a quem tenha assistido ao fim
do êxtase teórico ou, o que vai dar ao mesmo, à domesticação escolar do contra-discurso proposto originalmente pela
teoria:
- Sous diverses appellations, nouvelle critique, poétique, structuralisme, sémiologie, narratologie, elle brillait de tous ses feux. Quiconque a vécu ces années féeriques ne peut s’en souvenir qu’avec nostalgie. Un courant puissant nous emportait tous. En ce temps-là, l’image de l’étude littéraire, soutenue par la théorie, était séduisante, persuasive, triomphante. Ce n’est plus exactement le cas. La théorie s’est institutionnalisée, elle s’est transformée en méthode, elle est devenue une petite technique pédagogique souvent aussi desséchante que l’explication de texte à laquelle elle s’en prenait alors avec verve. In Compagnon, 1998.
A teoria a que Compagnon
se refere não é, contudo, exactamente a teoria que hoje se espraia sobre a mesa
dos estudos de teor culturalista. A teoria a que se refere é sobretudo relativa
à coisa literária ou, quando muito, a uma epistemologia da literatura passível
de conversão analítica e descritiva. A história desta teoria foi já contada uma
e outra vez; dispomos actualmente de um número considerável de estudos, de monografias
e de antologias. Foi com base nesta tradição teórica que se constituíram quadros
descritivos com largo impacto na formação de gerações de leitores, orientados sobretudo
para a compreensão da especificidade do literário. A teoria procurava, em primeiro
lugar, responder ainda à pergunta Qu’est-ce
que la littérature?» In Fernando Matos Oliveira, Poesia e Metromania, Inscrições
Setecentistas, 1750-1820, Dissertação de Doutoramento em Letras, na área de
Línguas e Literaturas Modernas, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra,
2008.
Cortesia da Universidade
de Coimbra/JDACT