Divergência e Diálogo
« A organização social nos coutos, honras e nos julgados do século XIV
era no geral idêntica à que se processava nas principais cidades e vilas? Nos
primeiros dominava uma economia de auto-subsistência e uma exploração de tipo
familiar. O senhor era o dono da terra e em boa parte dos seus colonos, sem
foros nem liberdades e, sobretudo, sem a organização concelhia para as
defenderem. O senhor actualizava permanentemente a renda da terra e sugava o
produto do trabalho suplementar e até do trabalho necessário. Nos concelhos a produção
voltava-se progressivamente para o mercado. Os homens-bons/cavaleiros vilãos (mercadores
e proprietários rurais) reuniam na sua mão terra não jugadeira, terra no
essencial livre, que faziam agricultar com os seus caseiros, lavradores, abegões,
mancebos, companhas de braceiros e onde os pastores apascentavam os seus
rebanhos. Pelas suas mãos escorria o pão, o vinho, o azeite, etc., que entrava no
mercado interno e internacional através de uma rede de mercadores, nacional e
europeia, particularmente de italianos.
Há mais de um século que estes homens-bons dirigiam a vida do concelho
em luta constante pela autonomia, pelos foros e liberdades contra o castelo e
os representantes do poder senhorial: o próprio rei, o alcaide, os meirinhos,
os mordomos. Viviam no concelho outros grupos sociais: os vizinhos-peões,
apertados em duas frentes: a dos homens- -bons que muitas vezes os expropriavam
pela força e os compeliam, até certos bens, a trabalhar por soldada ou a ceder
os filhos a trabalhar por soldada; e a do rei e dos senhores feudais que,
através da jugada e de outras alcavalas, procuravam sugar todo o trabalho suplementar.
Viviam ainda no concelho os homens dos ofícios, a maioria deles pequenos
produtores independentes. Outros, já donos de ofícios, assoldadavam os oficiais
e exploravam o trabalho dos aprendizes a bem fazer.
Havia finalmente os expropriados, os que não tinham nada de seu a não
ser a força dos seus braços. Jurídica e politicamente eram todos não privilegiados
e esta situação aglutinava de facto a massa heterogénea do concelho. Social e
politicamente, com as suas magistraturas eleitas e responsáveis pela direcção
efectiva da vida social, o concelho constituía um escudo que defendia os
dependentes das arremetidas dos senhores feudais e permitia a acumulação
progressiva da riqueza.
Não esqueçamos que, do ponto de vista ideológico, os pequenos
proprietários já sonhavam ser grandes enquanto parte dos assoldadados viviam na
casa, comiam à mesa do patrão. Este o mundo novo, estas as novas estruturas que
vencem o assalto que a nobreza desencadeia no reinado de Fernando I e que
avançam decisivamente após 1383
intervindo activamente já no próprio aparelho de Estado. Não se trata de
esmagar as estruturas feudais mas de romper o cerco que tenta abafar o mundo
novo. Há outros parâmetros de existência colectiva bem diferentes e bem
mais avançados do que a existência colectiva nos julgados, honras e coutos
senhoriais. E há consciência de que esses outros parâmetros da vida colectiva
existem e atraem parte da mão-de-obra camponesa dos julgados, dos coutos e das
honras.
Penso também que é possível conceber uma sociedade utopicamente
igualitária. Evidentemente não se trata da sociedade sonhada por Marx.
Não nos esqueçamos, porém, que existiam fortes laços de práticas sociais
comunitárias, práticas que chegaram até aos nossos dias. E não só nas aldeias
dos senhorios feudais. O concelho era
a comuna ou comum e os homens dirigentes do concelho os comunais. Só
que esta comuna era já profundamente desigual e contraditória. Mas subsistiam
bens do concelho ou do comum, tendas, fornos, baldios; subsistia a organização
do comum e a de grupo, como eram os hospitais. Não tinham ao seu alcance processos de acumulação capitalista.
Certamente não apresentavam a intensidade dos processos de acumulação dos
séculos XVI, XVII, XVIII, XIX ou XX. Mas havia processos de acumulação e havia
cabedal: comércio desigual, expropriação e roubo puro e simples dos mais
pequenos e fracos, manipulação da moeda e dos metais preciosos, cobrança das
rendas senhoriais, monopólios e já apropriação de mais-valia dos assalariados
dos campos e dos ofícios». In António Borges Coelho, A Revolução de
1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.
continua
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