«Mas, camarada António, tu não preferes que o país seja assim livre?,
eu gostava de fazer essa pergunta quando entrava na cozinha. Abria a geleira,
tirava a garrafa de água. Antes de chegar aos copos, já o camarada António me
passava um. As mãos dele deixavam no vidro umas dedadas de gordura, mas eu não
tinha coragem para recusar aquele gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava
à espera da resposta dele. O camarada António respirava primeiro. Fechava a
torneira depois. Limpava as mãos, mexia no fogo do fogão. Então, dizia:
- - Menino, no tempo do branco isto não era assim...
Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha
ouvido histórias incríveis de maus tratos, de más condições de vida, pagamentos
injustos, e tudo mais. Mas o camarada António gostava dessa frase dele a favor
dos portugueses, e sorria assim tipo mistério.
- António, tu trabalhavas para
um português? - Sim… sorria. - Era um senhor director, bom chefe, me tratava
bem mesmo… - Mas isso lá no Bié? - Não. Já aqui em Luanda mesmo; eu já tou aqui
há muito tempo, menino... inda o menino não era, nascido…
Eu esperava sentado por mais palavras. O camarada António fazia lá as
actividades da cozinha, sorria, mas ficava calado. Todos dias ele tinha o mesmo
cheiro, mesmo quando tomava banho, parecia sempre ter aqueles cheiros da
cozinha. Ele pegava na garrafa de água, enchia com água fervida, voltava a pôr
na geleira. – Mas, António, ainda quero mais água... - Não, menino, já chega -
ele dizia. – Senão depois no almoço não tem água gelada e a mãe fica
chateada...
Quando arrumava a garrafa de água, e limpava a bancada, o camarada António
queria continuar com as tarefas dele sem mim ali. Eu atrapalhava a livre circulação
pela cozinha, além de que aquele espaço pertencia só a ele. Gostava pouco de
ter gente ali.
- Mas, António... Tu não achas
que cada um deve mandar no seu país? Os portugueses tavam aqui afazer o quê? –
Ê!, menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa... tinha tudo, não
faltava nada... - Ó António, não vês que não tinha tudo? As pessoas não ganhavam
um salário justo, quem fosse negro não podia ser director, por exemplo... - Mas
tinha sempre pão na loja, menino, os machimbombos funcionavam… - ele só
sorrindo. - Mas ninguém era livre, António... não vês isso?
- Ninguém era livre como assim?
Era livre sim, podia andar na rua e tudo… - Não é isso, António - eu
levantava-me do banco. - Não eram angolanos que mandavam no país, eram
portugueses... E isso não pode ser... O camarada António aí ria só. Sorria com
as palavras, e vendo-me assim entusiasmado dizia esse menino!, então
abria a porta que dava para o quintal, procurava com os olhos o camarada João,
o motorista, e lhe dizia: esse menino é terrível!, e o camarada João
sorria sentado na sombra da mangueira.
O camarada João era motorista do ministério. Como o meu pai trabalhava
no ministério ele ajudava nas voltas da casa. Às vezes eu aproveitava a boleia e
ia com ele para a escola. Era magro e bebia muito, então de vez em quando
aparecia de manhã muito cedo lá em casa já bêbado, e ninguém queria andar no
carro com ele. O camarada António dizia que ele já estava habituado, mas eu
tinha receio. Um dia ele deu-me boleia para a escola, e fomos a conversar. - Ó
João, tu gostavas quando os portugueses estavam ca? – É o quê, menino? – Sim, antes
da independência, eles é que mandavam cá. Tu gostavas desse tempo? - As pessoas
dizem que o país estava diferente… não sei… - Claro que estava diferente, João,
mas hoje também está diferente. O camarada presidente é angolano, os angolanos
é que tomam conta do país, não são os portugueses… - É isso menino… o João gostava
de rir também, depois assobiava. - Tu trabalhavas com portugueses, João?
- Sim, mas eu era muito novo… E
estive no maquí também... - O camarada António é que gosta de falar muito bem dos
portugueses… provoquei. - Camarada António é mais velho - disse o João, e eu
não percebi muito bem aquilo. Ao passarmos por uns prédios muito feios, eu fiz adeus
a uma camarada professora. O João perguntou logo quem era, e eu respondi: é a
professora María, ali é o bairro dos professores cubanos. Ele me deixou na
escola. Os meus colegas estavam todos a rir porque eu tinha chegado de boleia. Nós
costumamos gozar sempre quem chega de boleia, por isso eu sabia já que eles iam
me estigar. Mas até não estavam a rir só disso.
- É o quê? – perguntei. O Murtala
estava a contar uma cena que tinha-se passado na tarde anterior, com a professora
María. - A professora María, mulher do camarada professor Angel? – Sim, essa
mesmo… - o Helder disse a rir. - Então ela hoje de manhã, lá na sala, tavam a fazer
muito barulho então ela quis dar falta vermelha no Célio e no Claúdio... ya'...
eles levantaram-se já pra ir refilar e a professora disse… - o Helder já não
podia mais de tanto rir, ele tava todo vermelho – a professora disse: ustedes queden-se aiá, ou aí ou quê!
- Sim, e depois? - eu também já
a rir só de contágio. - E eles se atiraram no chão mesmo… Rebentámos todos a
rir. Eu e o Bruno também gostávamos de brincar com os professores cubanos, como
eles às vezes não percebiam bem o português, nós aproveitávamos para falar rápido
e dizíamos disparates». In Ondjaki, Bom Dia Camaradas, Editorial
Caminho, Lisboa, 2003, ISBN 972-21-1524-3.
Cortesia de Caminho/JDACT