terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Bom Dia Camaradas. Leituras. Ondjaki. «Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histórias incríveis de maus tratos, de más condições de vida, pagamentos injustos, e tudo mais. Mas o camarada António gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria assim tipo mistério»


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«Mas, camarada António, tu não preferes que o país seja assim livre?, eu gostava de fazer essa pergunta quando entrava na cozinha. Abria a geleira, tirava a garrafa de água. Antes de chegar aos copos, já o camarada António me passava um. As mãos dele deixavam no vidro umas dedadas de gordura, mas eu não tinha coragem para recusar aquele gesto. Servia-me, bebia um golo, dois, e ficava à espera da resposta dele. O camarada António respirava primeiro. Fechava a torneira depois. Limpava as mãos, mexia no fogo do fogão. Então, dizia:
  •  - Menino, no tempo do branco isto não era assim...
Depois, sorria. Eu mesmo queria era entender aquele sorriso. Tinha ouvido histórias incríveis de maus tratos, de más condições de vida, pagamentos injustos, e tudo mais. Mas o camarada António gostava dessa frase dele a favor dos portugueses, e sorria assim tipo mistério.
 - António, tu trabalhavas para um português? - Sim… sorria. - Era um senhor director, bom chefe, me tratava bem mesmo… - Mas isso lá no Bié? - Não. Já aqui em Luanda mesmo; eu já tou aqui há muito tempo, menino... inda o menino não era, nascido…
Eu esperava sentado por mais palavras. O camarada António fazia lá as actividades da cozinha, sorria, mas ficava calado. Todos dias ele tinha o mesmo cheiro, mesmo quando tomava banho, parecia sempre ter aqueles cheiros da cozinha. Ele pegava na garrafa de água, enchia com água fervida, voltava a pôr na geleira. – Mas, António, ainda quero mais água... - Não, menino, já chega - ele dizia. – Senão depois no almoço não tem água gelada e a mãe fica chateada...
Quando arrumava a garrafa de água, e limpava a bancada, o camarada António queria continuar com as tarefas dele sem mim ali. Eu atrapalhava a livre circulação pela cozinha, além de que aquele espaço pertencia só a ele. Gostava pouco de ter gente ali.
 - Mas, António... Tu não achas que cada um deve mandar no seu país? Os portugueses tavam aqui afazer o quê? – Ê!, menino, mas naquele tempo a cidade estava mesmo limpa... tinha tudo, não faltava nada... - Ó António, não vês que não tinha tudo? As pessoas não ganhavam um salário justo, quem fosse negro não podia ser director, por exemplo... - Mas tinha sempre pão na loja, menino, os machimbombos funcionavam… - ele só sorrindo. - Mas ninguém era livre, António... não vês isso?
 - Ninguém era livre como assim? Era livre sim, podia andar na rua e tudo… - Não é isso, António - eu levantava-me do banco. - Não eram angolanos que mandavam no país, eram portugueses... E isso não pode ser... O camarada António aí ria só. Sorria com as palavras, e vendo-me assim entusiasmado dizia esse menino!, então abria a porta que dava para o quintal, procurava com os olhos o camarada João, o motorista, e lhe dizia: esse menino é terrível!, e o camarada João sorria sentado na sombra da mangueira.
O camarada João era motorista do ministério. Como o meu pai trabalhava no ministério ele ajudava nas voltas da casa. Às vezes eu aproveitava a boleia e ia com ele para a escola. Era magro e bebia muito, então de vez em quando aparecia de manhã muito cedo lá em casa já bêbado, e ninguém queria andar no carro com ele. O camarada António dizia que ele já estava habituado, mas eu tinha receio. Um dia ele deu-me boleia para a escola, e fomos a conversar. - Ó João, tu gostavas quando os portugueses estavam ca? – É o quê, menino? – Sim, antes da independência, eles é que mandavam cá. Tu gostavas desse tempo? - As pessoas dizem que o país estava diferente… não sei… - Claro que estava diferente, João, mas hoje também está diferente. O camarada presidente é angolano, os angolanos é que tomam conta do país, não são os portugueses… - É isso menino… o João gostava de rir também, depois assobiava. - Tu trabalhavas com portugueses, João?
 - Sim, mas eu era muito novo… E estive no maquí também... - O camarada António é que gosta de falar muito bem dos portugueses… provoquei. - Camarada António é mais velho - disse o João, e eu não percebi muito bem aquilo. Ao passarmos por uns prédios muito feios, eu fiz adeus a uma camarada professora. O João perguntou logo quem era, e eu respondi: é a professora María, ali é o bairro dos professores cubanos. Ele me deixou na escola. Os meus colegas estavam todos a rir porque eu tinha chegado de boleia. Nós costumamos gozar sempre quem chega de boleia, por isso eu sabia já que eles iam me estigar. Mas até não estavam a rir só disso.
 - É o quê? – perguntei. O Murtala estava a contar uma cena que tinha-se passado na tarde anterior, com a professora María. - A professora María, mulher do camarada professor Angel? – Sim, essa mesmo… - o Helder disse a rir. - Então ela hoje de manhã, lá na sala, tavam a fazer muito barulho então ela quis dar falta vermelha no Célio e no Claúdio... ya'... eles levantaram-se já pra ir refilar e a professora disse… - o Helder já não podia mais de tanto rir, ele tava todo vermelho – a professora disse: ustedes queden-se aiá, ou aí ou quê!
 - Sim, e depois? - eu também já a rir só de contágio. - E eles se atiraram no chão mesmo… Rebentámos todos a rir. Eu e o Bruno também gostávamos de brincar com os professores cubanos, como eles às vezes não percebiam bem o português, nós aproveitávamos para falar rápido e dizíamos disparates». In Ondjaki, Bom Dia Camaradas, Editorial Caminho, Lisboa, 2003, ISBN 972-21-1524-3.

Cortesia de Caminho/JDACT