«Arrancou
a experiência da adaptação polaca de Julius Slowacki (1844) que, romântico e polaco, em Calderón, mais
intensamente recolheu o aprendizado de um sofrimento passivo de um oprimido do
que o filão subjacente do conflito de religiões. Reeditado em 1930, e seguido na sua lógica interpretativa,
o texto foi adoptado pelo teatro laboratório de Wroclaw, que Grotowski orientou
entre 1965 e 1968, com critérios cientificamente
preferenciados que ora o aproximavam, ora o afastavam do
original espanhol, com um final que nem sequer dramatizava a vitória última dos
cristãos.
No
palco, independentemente das rigorosas exigências postas ao protagonista,
apreciava-se uma talentosa Companhia, em que significativamente se cruzavam os
papéis e inteligentemente se contradiziam os registos, numa conseguida (?) tentativa de modular por
imperativos do século XX uma peça recheada de condimentos seiscentistas
ibéricos. Sendo, contudo, desta feita, o nosso alvo bem outro, permitimo-nos ultrapassar
juízos sobre a qualidade do grande homem de teatro que foi Grotowski (1999), retroceder no tempo e dar o
sinal de partida para a anunciada revisão do circuito textual que foi possível
enlaçar.
Com Camões na encruzilhada
Terá
realmente lançado Camões a primeira pedra para a imposição mítica da figura do infante
Fernando como mártir voluntário, corajosamente rejeitando a troca da
sua libertação pela restituição de Ceuta aos muçulmanos? Possível, possível
não deixa de ser, mas nisso não vale a
pena fazer finca pé, porquanto, se os juízos sobre o Infante Santo
algumas reviravoltas têm conhecido, ao longo dos séculos, quem sabe de que
outra documentação ainda poderemos vir a dispor para melhor e mais
frutuosamente nos enredarmos nos retoques de um perfil que, valha a verdade, só
a uma reduzida parcela de gente inquieta continua a interessar, uma vez que à
desavença entre o rigor de uma praticamente aceite verdade histórica e o
labor do imaginário colectivo não será fácil colocar um termo (e será desejável?).
NOTA:
O que, sim, julgamos saber é que o infante Fernando está depositado no Mosteiro
da Batalha, na capela real, na parede sul; tem como divisa le bien me plet; deve ter tido a encimar o túmulo pequenas gravuras
com fases do seu martírio, mas hoje, delas, não restam traços.
Para
começar, a Camões o que a Camões pertence, quando, no
Canto IV d’Os Lusíadas, ao
referenciar as desditas de Duarte I, como o contraponto da Fortuna às vitórias
da ínclita geração, nos conta
entre magoado e orgulhoso:
Viu
ser cativo o santo irmão Fernando
(que
a tão altas empresas aspirava),
que,
por salvar o povo miserando
cercado,
ao Sarraceno se entregava.
Só
por amor da pátria está passando
a
vida, de senhora, feita escrava,
por
não se dar por ele a forte Ceita.
Mais
o público bem que o seu respeita.
Codro,
por que o inimigo não vencesse,
deixou
antes vencer da morte a vida;
régulo,
porque a pátria não perdesse,
quis
mais a liberdade ver perdida.
Este,
por que se Espanha não temesse,
a
cativeiro eterno se convida!
Codro
nem Cúrcio, ouvido por espanto,
nem os
Décios leais, fizeram tanto.
Comentemos
as achegas:
- primeira (atrás adiantada), se um santo irmão teve o rei, decorreu essa santidade do oferecimento espontâneo a um pesado cativeiro;
- segunda, o suporte para tão difícil e corajosa opção não foi senão o da incontornável fidelidade à pátria.
Para
os de menos memória, a recapitulação: Codro deixou-se matar para evitar o
triunfo dos dórios sobre Atenas, Régulo, prisioneiro em Cartago, tendo sido
mandado a Roma para preparar um tratado de paz que permitisse permuta de
prisioneiros (no número dos quais se encontrava), aconselhou o Senado a não o
levar por diante, tendo sido morto ao regressar a Cartago; os Décios
(pelo menos, pai e filho) foram vencidos e traiçoeiramente assassinados quando
tentavam cortar a retirada dos inimigos, Cúrcio tombou numa cova armadilhada
para que se não enfraquecesse o ânimo dos seus.
Codro, Décios,
Régulo, Cúrcio, cada qual a seu modo, pela pátria ofereceram a vida. As
comparações não poderiam ser mais explícitas em termos de assumida coragem e
desprendimento pessoal. Ora, a verdade é que, se por um lado, esta camoniana abnegação do Infante,
falo do voluntário sacrifício, não da paciência na adversidade, que se saiba,
ainda não tinha sido aduzida por historiadores e biógrafos, também verdade é
que, de martírio em defesa da fé cristã, não há por aqui entusiasmantes
notícias». In Maria Idalina Rodrigues, Do
Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom
Fernando a El Príncipe
Constante, Via Spiritus 10, 2003.
Cortesia de Via
Spiritus/JDACT