sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os Teatros de Lisboa: Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «Mongini tinha gosto pela poesia, era grande amador das letras, cultivava-as como recreio, e estimava muito os que se distinguem com talento fazendo profissão delas. Na manhã do dia em que partiu, fez versos aos seus amigos de Lisboa»

A grande Alboni
jdact

NOTA: De acordo com o original

«Aqui, dizem ellas, n'este camarim, esteve a famosa Novello, e depois a Castellan, e a Tedesco, e a Volpini, e a infeliz Pascal-Damiani que quebrou uma perna uma noite e nunca mais se levantou da cama senão para se tratar de um ataque de loucura, e a Giovanoni, e a Fricci, e a cantora por excellencia, a priveligiada, a maravilha, que o Ruas nos trouxe. Um prodígio! A voz mais argentina e fresca! Uma voz de rapaz a pairar com uma voz de rapariga… na mesma guela! A grande, a gorda, a rara Alboni!
N'aquelle, esteve a Pareppa e a Bianchi, e a Uberti, e a Dorr, e a Lablache, e a Lotti…
A força suave! O poder fácil! A delicadesa vigorosa! Nem fadiga nunca, nem esforço. Um pouco fria, diziam; mas tão elegante e tão formosa! Qual fria! Não seria um brazeiro, estamos d'accordo; mas não seriam talvez os frialões os que mais se queixavam da frieza d’ella? Os ladrões, por via de regra, são quem mais gosta de gritar Aqui d'El-rey!
N'aquelle, o segundo do lado da escada, estiveram a Gazzaniga, e a Bendacci, e a Massini, e a Carlota Marchisio, voz de soprano purissima, a Norma das feias. Quando ella appareceu em Lisboa com sua irmã Barbara, houve um quarto de hora de surpreza. Pareciam… dois homens! Dois homens feios! Dois homens feios, vestidos de mulher! Mas a voz era tão agradável ao ouvido, que… fazia fechar os olhos. Permittiu-se-lhe, á famosa Carlota, uma das maiores temeridades, sem pestanejar de pasmo. Uma noite, na Somnambula, quando menos se esperava, appareceu de loira! Este povo é muito hospitaleiro!
E a Borghi-Mamo, a voz com mais talento e com mais alma que tem acordado no nosso tempo os eccos de S. Carlos. E estremecem as velhas costureiras, como se avistassem ao longe as sombras da gloria na névoa do passado e na poeira dos camarins. Ha artistas que nunca mais esquecem. Uns, pelo sublime. Mongini, por exemplo.


Mongini que teve entre nós todas as glorias; primeiro as do amor, e no fim, por um momento, as do ódio. Nas recitas finaes da ultima estação que fez em Lisboa, Mongini recusou-se a cantar, porque a ameaça publica rugia por ahi contra elle, accusando-o de pouco amável para com Portugal, por não haver querido cantar a opera dum portuguez, O Arco de Santa Anna, de Francisco Sá Noronha. O grande tenor partiu de Lisboa como que dando a entender que não tornaríamos a ouvir aquella voz deliciosa, cuja limpidez nocturna fazia sonhar com o luar, a banhar-se no orvalho que cae em pérolas sobre as flores! Tantas festas, tanto applauso, tantos triumphos, tanto phrenesi de enthusiasmo, ahi está no que deu tudo isso, num capricho! Tudo se quebra n'este mundo; é essa uma das melancholias mais profundas da existência humana.
Por maior génio, esplendor, mocidade e gloria, que tenha um homem, lá chega a hora em os mesmos que o proclamavam inimitável teem gosto em o amargurar. Talvez assim deva ser, para que todos tenham o seu dia; e toque a cada um passar por baixo da luz que brilha, como a onda pelo rastilho do luar antes de ir perder-se na immensidade escura...
Mongini tinha gosto pela poesia; era grande amador das lettras, cultivava-as como recreio, e estimava muito os que se distinguem com talento fazendo profissão d'ellas. Na manha do dia em que partiu, fez estes versos aos seus amigos de Lisboa:

Addio agli amici
In mezzo a voi da gelide contrade
Men venni, or son sei anni sconosciuto;
Tali mi deste prove di bondate
Che ringragiai il Ciei d'esser venuto.

Ognor crescente si fu in voi l’affetto
Giammai conobbi il duol glammai l'affanno;
Voti formai d'amor, per voi nel petto
Che per andar di tempo non moranno.

Le Auguste Maestá pien di clemenza
Mi vollero onorar con distinzione,
Eterna serberó riconoscenza,
Ossequio, servitu e devozione.

Amici addio, giunto é omai l'istante
Ne so ove mi chiama il mio destino;
Che l’artista, per sua vita errante
Un limite non ha nel suo cammino.

Ma se varcassi l’Oceano intero,
Questa terra per me sacra, un sospiro
S'avrebbe dei mio cor, che dal pensiero
Imille affetti suoi non si svaniro.

Se spietata una nube di dolore
Volle offuscar tant'anni di contento,
L'abblio la sperda, per quel tanto amore
Di voi in mezzo a cui grande mi sento!

Amici miei, anche una volta addio!
Sull’ ali del pensier, vi giunga ardente
Dai patrii lidi il saluto mio
II saluto deir uom riconoscente.


Querido artista! Não consentiu a morte que elle voltasse a Portugal e que o publico lhe tornasse bem sensivel que aquelle momento de ódio á despedida ainda havia sido também, de algum modo, amor!
In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de Livraria Editora Mattos Moreira, 1874/Bordalo Pinheiro
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