sábado, 23 de fevereiro de 2013

Legendas de Lisboa. Norberto Araújo. «Era uma vez uma cidade de mouras e valis... E era. Foi assim a Lisboa sarracena que sucedeu à dos godos depois que se afogou no Guadalete a estrela de Rodrigo. Lisboa era a Alcáçova, a Kssaba mourisca…»


Desenho de Martins Barata
jdact

Trono de Santo António
«Lisboa é toda ela uma legenda. E a legenda reparte-se em mil, tal um espelho feito em pedaços e nos quais, em cada um deles, a imagem se reflecte com nitidez e em profundidade. Tudo ascende e rescende. Visões de beleza, evocações do passado, perfumes dos canteiros populares. Um passo de crónica, uma, redondilha, dois versos de uma balada que se perde na noite das lendas e costumes. Ao cabo, e no conjunto, um trono de Santo António que a natureza e d homem foram armando, quase sem dar por isso, desde o começo da nacionalidade.
Estas Legendas, esparsas são traços sublinhados de tudo que possui encanto ou mistério. Despreza-se o que é feio pelo direito que assiste àqueles, que amam. Recolhe-se o espírito e poetiza-se a matéria. Do arbusto sagrado corta-se apenas a flor.
Não nos propusemos ir mais longe. Digamos com Fernanda de Castro:

… Através da cidade
que se estende, se enrosca e serpenteia,
e parece bordada em talagarça…
 - Cidade quase linda e quase feia…

Através da cidade de Lisboa
em que soa e ressoa
o mar, o inquieto mar,
uma voz anda sempre a declamar
versos gostosos, frescos, sumarentos…

Era uma Cidade de Mouras...
Queria começara legenda deste jeito: - Era uma vez uma cidade de mouras e valis... E era. Foi assim a Lisboa sarracena que sucedeu à dos godos depois que se afogou no Guadalete a estrela de Rodrigo. Lisboa era a Alcáçova, a Kssaba mourisca, ninho de águias que fora romano e godo - o Castelo de hoje. Aschbouna esplendia em beleza que durou quatro séculos e meio. Sucediam-se os valis, em representação dos emires, e sucediam-se as gerações, nesta encantadora e poética cidadezinha, que não podia fazer inveja a Córdova mas era já um orgulho do Garbb, émula de Chenchir. Dava uma Alhambra pequenina com seus palácios coroados de almadenas, rutilantes minaretes, com seus eirados forrados de mosaicos, seus muros vestidos de azulejos, de oiro e verde, os alegretes de tijolo, os claustros interiores sussurrantes de fontes, os pátios floridos, as arcarias de volta, as janelas de ajimez, todo um miniatural mundo mourisco, suando lendas e versículos, rodeado de jardins, de pomares, de cidreiras e de laranjeiras, de termas que banhariam sultanas do Crescente ou filhas de califas.
Pelas ruas tortuosas ou na praça alta da qual, sobre o lençol de casario de telha verde esmaltado, se vislumbravam os campos de Alfela, as mesquitas de Allah, os aduares dispersos, as adufas timidamente cerradas, as almoinhas do nordeste, e os campos silvestres acima de Alfama; entre tendas e mercados, estendal formoso de panos e de metais; de mistura com as chilabas dos mounos, do tempo de Abd-er-Rahman, as adargas dos militares, os albornozes dos mercadores, os alquicés da burguesia, todos silenciosos no pisar das babuchas vermelhas bordadas a lhama, passavam as mouras a caminho das fontes com seus véus brancos de virgens, os cântaros à cabeça, sob o fundo dos portais marchetados nas ombreiras, de portas chapeadas de prata.
Ouvia-se no interior das casas a toada melancólica ao som dos alaúdes, adufes e pandeiros, que encantaram Lisboa cristã, antes de virem as guitarras. E… era uma vez uma cidade de mouras e valis...

In Norberto Araújo, Legendas de Lisboa, edições SPN, Lisboa, 1943.

Cortesia de SPN/JDACT